André pegava-se refletindo em
como nunca esquecia nada. Ao entrar numa sala, seus sentidos gravavam o cheiro,
a cor, a luz, a disposição dos móveis, dos quadros, o modo como alguém se
sentava, cruzava as pernas – inclusive a quantidade de vezes –, a música que
estava tocando no local e, principalmente, o que lhe falavam, detalhe por
detalhe – até mesmo a entonação.
As lembranças do amor revoltoso e
caótico que teve com Anna há um ano ainda rodavam sua mente. Lembrava ensaio
fotográfico que vez com ela – a primeira vez que ela tinha posado nua – o café
preparado a fim de conter o frio do inverno, as luzes, os tons multicoloridos
daquele dia ainda clareavam sua mente. De forma persistente André pensava se
aquilo era um tipo de benção ou de maldição: lembrar tudo, lembrar tudo, benção
ou maldição? Pensar assim é maniqueísta demais, vamos deixar para lá.
Mas, hoje foi um dia atípico para
ele, após ter trabalhado bastante com um book de uma modelo emergente, ele
resolveu parar no pub da esquina e passar o tempo. O cheiro do cigarro, de
cerveja, de suor misturado com perfume, com o tom acinzentado do ambiente, tudo
estava sendo gravado em sua memória, tudo. Sentou-se numa mesa na esquina do
pub, lugar estratégico que gostava de ficar, era isolado e ninguém ia lá,
porém, de lá se observava todo o pub.
Às vezes André procurou encontrar
ali uma mulher estonteantemente bela, queria mostrá-la ao mundo, mas ela nunca
apareceu e André continuava esperando, esperando. Sentiu um perfume se
aproximando e tirou os olhos da câmera fotográfica, era uma mulher, era mulher
apesar de não ser estonteantemente bela, mas, bonita sim. Com um perfume leve,
mas, perceptível na distancia. Um vestido vermelho, não muito chamativo, com um
decote nos seios, e longo. André mal terminou de observar aquela mulher e ela
já começou falando:
- Você é o André, não é? Aquele
fotógrafo que percorreu o mundo lançando seu álbum fotográfico com aquela
modelo, Anna? – ela parecia estar bastante interessada em alguma coisa, mas
André já estava acostumado com jornalistas disfarçadas de belas e atraentes
mulheres.
- Sou eu sim, como você se chama,
quer um autógrafo? – ele já estava pegando a caneta do bolso da camisa quanto
sentiu as mãos macias da mulher impedindo a finalização do gesto, mãos suaves,
movimentos suaves, suaves, mas, incisivos, com vontade.
- Não André, eu quero só
conversar, um cara famoso como você achou mesmo que ia ficar anônimo toda à
noite? Tenho te observado durante duas horas, você olhou para muitas pessoas,
bebeu alguns chopes, olhou para mais pessoas, olhou para sua câmera, tirou
algumas fotos, provavelmente brincando com a pouca luz do ambiente e as cores
fortes das roupas das pessoas, porém, esqueceu-se de reparar em quem lhe
reparava – a mulher havia lembrado os movimentos de André durante duas horas
seguidas, o olhou bastante, talvez tenha fitado um pouco e ele não percebeu.
- Bem, - ainda desconsertado tentou
responder – bem, você ainda não disse seu nome – agora ele achou que pegou ela
de jeito, André conhecia bem os nomes das jornalistas de rádio, TV e revistas,
tinha um informante que lhe passava os nomes e é claro não esquecia nenhum.
- Sou Violet, mas prefiro o
vermelho – Violet sempre brincava com seu nome, claro, violeta em francês como
no inglês e para o italiano mudava um pouco, porém muito parecido: viola. Riu
com André sobre a brincadeira, mas logo voltou ao assunto – sabe, acho que você
sofre do mesmo mal que eu, você gosta de observar pessoas, e talvez também
tenha uma boa memória, e se utiliza disso para fotografia, estou certa?
- Está sim Violet, que por sinal
é um bonito nome, pronunciado em Francês é belo (violé), tem uma sensualidade
na pronuncia, que se parece com você, e o vestido vermelho ajuda, bela junção
de cores – André não estava muito certo se Violet não seria uma jornalista, mas
deixou de lado esse ponto, a conversa talvez se tornasse interessante, decidiu
deixar Violet ditar o tom das coisas, o futuro sempre é incerto.
- Responde minha pergunta rapaz,
mude de assunto não, deixe de ficar só olhando, cheirando e memorizando,
responde, deixe a voz escapar, suas qualidades se mostrarem como fez com a Anna
– Violet chegou ao assunto que queria, realmente, ela queria saber da história
de André com Anna, durante toda a turnê de autógrafos esse foi um grande
mistério, até porque, o ensaio fotográfico tinha muita sensualidade,
despertando o desejo de qualquer pessoa, as cores, o tom da pele de Anna, e o
famoso rosado dos seios sempre chamavam atenção, sempre – eu sei que deve ser
difícil esquecer aquele perfeito tom rosado nos seios, não é?
- Agora você está querendo saber
demais Violet, realmente, eu sofro do mesmo “problema” que você eu lembro tudo,
cheiro, cor, tempo, espaço, sensação, emoção, traços do rosto, tudo, nos mínimos
detalhes e utilizo isso sim para a fotografia. Não é crime usar as qualidades
para um bom trabalho, não leso ninguém com isso. Mas, você, com certeza, esta
querendo saber demais. Está querendo ter informações minhas sem falar nada de
você, vamos deixar isso mais agradável, você compartilha comigo de um chope e
conversamos melhor, o que acha?
- Sem problema – Violet foi até o
balcão do pub e pediu dois chopes, deixando André mais impressionado, ela tinha
o tom da pele macio, as mãos macias, usava um decote no vestido muito discreto,
o tom do vermelho não era chamativo, tinha um nome sensual, mas não invasivo,
porém, era uma mulher decidida. André estava gostando do desenrolar das coisas.
Conversaram bastante e a noite
voou, Violet falou que estudava fotografia havia dois anos, a no segundo ano da
faculdade se deparou com o trabalho de André, os Tons Multicoloridos, título do álbum lançado tendo Anna como
modelo, foi aplaudido pela crítica. André havia inovado ao usar o efeito do
arco-íris com cristal e produzir cores em estúdio, era inovador, diferente
ousado. Mas, Violet e André sabiam que a história com Anna foi muito mal
contada para os jornais, revistas e afins. André prometeu a Anna que não
contaria nada, e Anna permaneceu com a boca fechada, até porque toda a história
foi como um boom de publicidade para ela, e sua carreira como modelo havia
deslanchado de vez. Mas, nessa altura a história já havia sido esquecida, mas,
Violet apareceu para lembrar algumas coisas.
Eles conversaram sobre suas
memórias, sobre como era estranho lembrar o que todos esqueciam, o que ninguém
se importava em registrar ou não conseguiam. Era difícil, difícil saber o
motivo exato para uma discussão, ou saber a palavra certa para levar alguém
para cama. Saber como convencer alguém, saber como as pessoas preferiam as
coisas, e impressioná-la, era uma vantagem em determinadas situações. Mas, como
sempre, saber o motivo de uma briga, de uma discussão, saber o motivo pelo qual
uma pessoa fez determinada coisa era complicado. André e Violet passaram horas
falando sobre isso e Violet contou alguns pontos de sua vida, a saída de sua
cidade natal para fazer faculdade, o termino de um namoro antigo, briga com
alguns parentes e o modo com que fazia novos amigos. Tudo parecia ser feito
mediante o registro que ela tinha de tudo.
Eles se falaram mais algumas
horas, muitas horas, até Violet voltar ao assunto, e depois de muitos chopes
bebidos e de horas de conversa agradável André soltou o verbo:
- Violet, você acha mesmo que
naquele clima frio, depois daquele excitante e cansativo ensaio fotográfico,
após horas de interação entre eu e Anna, após eu estar em extremo deleite com o
tom rosado dos seios dela, do azul dos olhos, e com as curvas eu não iria
apresenta-la ao meu café irresistível? Com certeza, eu sabia que era uma tática
que não falhava.
- Tática que não falha? – Violet
e André sorriam com o tom que Violet perguntou isso - Você com certeza já
testou muito esse café?
- Nãããão, não, muito não, mas já
havia testado sim – o ar engraçado da conversa não suprimia a brisa de flerte,
de sorriso leve nos lábios, lábios, sim, os da Violet tinha um tom rosado, o
mesmo dos seios de Anna. André reparava isso, cada vez mais e sabia que Violet
já havia percebido.
- Tudo bem, você está me dizendo
que realmente deitou com Anna, tiveram uma atração, uma noite de amor
belíssima, mas, o que você não disso foi o que aconteceu depois – Violet estava
interessada na história e no café, claro.
- Na manhã seguinte eu acordei
antes que ela, gastamos muita energia durante a noite, na verdade quase não
dormimos, foi algo especial, a pele da Anna cheirava a alguma flor, eu já havia
sentido o cheiro, mas não perguntei o nome da flor, se houvesse perguntado eu
saberia. Bem, tomamos café e eu passei a preparar o book, nos enclausuramos no
meu estúdio/casa por uma semana, uma interminável semana de nudez, risadas e
fotos. Inesquecível, belo, porém trágico. Não, trágico não. Um pouco triste,
pois, sabíamos que a história não duraria muito. Eu sempre fui incorrigível,
não ia conseguir me prender a ela por muito tempo. Nem ela se prenderia a mim,
não havia promessas entre nós, e ela tinha que seguir sua vida.
- História interessante – Violet
olhava atentamente o modo como André contava algo, o modo como seus olhos
falavam: estou puxando algo da memória e lembro mais do que estou falando.
Violet queria saber os detalhes, mas não ouvindo, vivendo. Depois de tanta
conversa e tantos chopes, depois de tantos olhares dele para ela, ela sabia que
ele estava interessado nela, em seus lábios rosados. Violet queria tomar aquele
café – O que você acha de tomarmos um café? Talvez você faça um pra mim?
- Claro – Violet deixou André
desconsertado novamente, ela era uma mulher decidida, mas bela, sensual e
atraente. André estava enfeitiçado. Não, não estava. Estava excitado pela
situação, diferente, deliciosa, cheirosa e com tons de café, vermelho, rosa e
violeta.
Saíram do pub, foram em carros
diferentes, mas chegaram ao mesmo lugar. A casa/estúdio de André tinha um
cheiro impregnado de café, não saia, cheiro cremoso como o líquido e, quente,
quente como o calor de dois corpos suados em atrito constante durante uma noite
fria e incomum.
(Y.S.S.)