Já estava ficando escuro. Algumas estrelas no céu eram
apenas o atraso de sua luz antes de extintas, mas, pequenos como somos as
víamos brilhando como se sempre estivessem lá. Menor ainda era o brilho dos
postes que iluminavam a avenida em que André andava a passos curtos, mórbidos. As
pessoas passavam e pareciam borrões, ele parecia vagar numa estrada sem fim,
como se andasse e não houvesse calçada, caminhava sobre nada e mesmo assim
seguia um caminho.
Só
conseguia pensar na noite anterior, quando recebeu a notícia pelo telefone.
Claire o havia ligado milhares de vezes, mas, como estava concentrado na
revelação de algumas fotos não quis atender. Foi ingênuo e prepotente. Claire
não era de ligar para ele. Depois de toda a história que envolvia ele, Anna,
Claire e Violet. Claro, claro que Claire sabia sobre Violet e Anna. Porém, ela
nunca quis se aborrecer com Anna, na verdade, nunca conseguiria. Talvez, no dia
em que ligou para André, ela estivesse.
O dia havia passado lento para André, como se
a Terra finalmente decidisse não se apressar tanto em rodar sobre si mesma.
Mas, tudo possui uma reação, e o Sol queimava mais forte. André, já não estava
aguentando o calor quando saiu de casa e sabia que quando anoitecesse faria
bastante frio, levou seu casaco. Ao descer no estacionamento tinha percebido que
havia esquecido as chaves do carro, não se importou, foi andando mesmo. Vagava,
vagava pelos seus pensamentos. Vagava e a cada ideia vaga navegava uma
lembrança vaga.
Cada uma
dessas lembranças era uma alfinetada, alfinetada num balão d’água. Estoura
rapidamente e enche outro recipiente de memórias, fluídicas memórias que conseguem
arrastar como um rio raivoso ou moldar lentamente como se pingasse do teto de
uma caverna escura. Ultimamente tudo parecia uma caverna escura.
André
lembrou-se da ligação da noite anterior, doía o peito. Lembrava-se da voz de
Claire chorosa e com raiva, muita raiva. Ela vociferava que ele era um cretino
por não ter atendido, falou que ele não deveria ter feito aquilo, falou que ele
só se importava com as fotos e com mulheres bonitas e gostosas para fotografar,
mas se esquecia de quem realmente importava. Gritava ao telefone que ele só
conseguiu novamente ter um boom na carreira, além do sucesso já conquistado,
por conta do tão aclamado book com a linda mulher de seios rosados, pele
rosada, lábios rosados. Tudo que ele havia reconquistado foi com a ajuda de
Anna. Ela gritava como Anna era importante para a vida de todos, inclusive de
Violet. Ela gritou que Anna estava morta!
Foi nesse
exato instante que para André o mundo freou bruscamente, ele foi empurrado para
fora do mundo e lá permaneceu num abismo. Anna estava morta. Mal conseguiu
distinguir seus pensamentos das palavras de Claire. Balbuciou uma pergunta
simples: “como?”.
Tudo o que
sabiam era que Anna havia cometido suicídio. Tomou uns remédios numa grande
dosagem. Mas, aparentemente depois de não tolerá-los os havia vomitado, mas,
ainda com os sentidos bastante afetados decidiu cortar os pulsos. “Era a coisa
mais óbvia e estupidamente idiota de se fazer, morrer como uma drogada
desequilibrada, uma adolescentezinha de merda que acha que ser roqueira e
morrer nova trará algum ensinamento para seus pais, ou para o mundo! Tola,
tola, mil vezes tola!”, era tudo o que André conseguia pensar no momento em que
Claire contava-lhe a notícia. Ele definitivamente não achava isso dos
adolescentes com problemas familiares, só não conseguiu impedir suas sinapses
de responderem ao extinto de identificar o ato de Anna com algo que discordava,
mas de algum modo achava realmente estúpido. Responder como ele se sentia era
difícil. E ainda é.
Ele andava
sem chão na tentativa de fazer a Terra girar um pouco mais rápido e passar logo
para o outro dia. André caminhava como se estivesse sem rumo, mas, seus pés
sabiam para onde o levar. Era para o cemitério onde Anna seria velada, ou
melhor, o corpo de Anna.
André
lembrou-se quando e como conheceu Anna. Anna era jovem, tinha dezenove anos e
pretendia subir na carreira, precisava ajudar sua família, moravam no subúrbio.
Desde pequena era muito bonita e chamava a atenção por onde passava. Logo aos
quinze anos foi convidada para participar de algumas propagandas de produtos
pequenos. Perfumes, loções para banho, hidratantes. Fez fotos no parque,
praças, teatros, e no chuveiro. Nunca quis posar nua. Aos dezoito anos Anna
montou uma teoria: o subúrbio era o lugar de mulheres bonitas, majestosas,
lindas e com sex appeal. Aos dezenove, sabia que tinha que deslanchar como
modelo, e soube do trabalho de André. Ele era um fotógrafo renomado, tinha
batalhado muito para chegar onde estava, e tinha apenas trinta anos.
Quanto mais
lembrava, mais as lembranças o torturavam. Aquele dia foi infinitamente
especial, pois, nalgum momento ele decidiu dar alguns zooms nos seios de Anna,
eles eram médios em formato de gota, mamilos rosados e com a pele clara. André
gostou do tom rosado. Anna era clara, não muito branca, nem puxando para um tom
amarelado, era clara. André soube aproveitar muito bem o tom de pele dela.
Soube aproveitar melhor ainda o resto da noite, pois, Anna não voltou para
casa, a neve não iria deixar de qualquer jeito. Os dois, naquele estúdio, ali
no chão mesmo, transformaram em cores o que através da janela era o branco da neve.
Seus pés
finalmente pararam. Ele despertou, olhou para os lados e tinha alguns
jornalistas acompanhando tudo com um bloco de notas, o padre que ia dizer
algumas palavras, a família de Anna e Claire junto com Violet. Mesmo com tanta
escuridão e ameaça de chuva, André via claramente a beleza naquelas duas
mulheres.
Lembrou-se
de quando conheceu Violet naquele bar, ela quem havia ido falar com ele, o
reconhecera. Violet estava com um novo vestido vermelho. Ela gostava da cor,
não usaria nunca violeta, seria muito redundante. Ela não gostava de
redundâncias. Era levemente decotado e facilitava na sensualidade. Seu corpo
era lindo, magro e não muito volumoso, mas com curvas, com seios e um pouco de
bunda, pouco. Seus lábios tinham um peculiar tom rosado. Tão peculiar e tão
rosado que Violet normalmente não usava batons, preferia deixar sempre seus
lábios umedecidos. Seu olho era verde claro, mas, ela sabia usar o olhar para
realçar a cor. O verde era claro, mas invasivo, observador. Na noite anterior
ela percebeu, logo ao entrar num pub, um homem sentado estrategicamente numa
das pontas do estabelecimento. O observou por quase duas horas e após ter
colhido informações suficientes e lembrado de informações suficientes foi até a
mesa onde estava o fotógrafo reconhecido e puxou conversa. Depois de algumas
horas no pub, André convidou-a para um café em seu apartamento, que também era
seu estúdio.
O fator
gustativo do café mostrou seu valor, não permitindo que nem Violet nem André
terminassem a noite na mão. O frio da noite facilitou a aproximação a fim de
calor, calor humano. A embriaguez facilitou na decisão de André de tocar na
cintura de Violet, um toque preciso, na parte mais sensível da cintura dela.
Arrastou os dedos pelas costas, fazendo o caminho inverso da costura, chegando
à alça, despiu-a. Parou ali, olhando os seios de Violet, lindos. Formato,
volume, cor, sinais, tudo simetricamente preparado para excitar o paladar.
Violet viu a cena, levou seu seio
desnudo aos lábios de André. O tempo mudou a rotação, o que era devagar virou
rápido, extremamente rápido, insano e profundamente caótico. Logo a mesa não
iria aguentar o peso e os movimentos bruscos, caíram no chão. Mudaram de
posições, trocaram prazeres, faziam o que a embriaguez permitia. Sorte que a “dose”
de café foi generosa, Violet quase não estava sobre efeito alcoólico, a
adrenalina tomou conta do corpo, o prazer tomou conta do corpo. O suor
respingava no chão, as mãos suadas não se sustentavam paradas e escorregavam
frequentemente. Rapidamente estava na cama, rapidamente repetiam tudo, tudo.
Durante a madrugada, ainda acordados conversavam, a partir da conversa
testavam. Testavam-se, trocando experiências, prazeres, gostos, tons, fluidos e
cheiro. O atrito descamava a microscópica crosta de tecido morto da pele de
ambos, aonde se fixava o cheiro dos perfumes, logo o cheiro iria se impregnar
na cama, assim como os fios de cabelos negros de Violet no travesseiro.
Foi tudo
muito rápido, o modo como a lembrança passou por sua mente. Claire olhava para
ele, seu rosto estava abatido, tanto quanto o de Violet e o dele mesmo. Ninguém
conseguia imaginar o que houve e aparentemente tudo estava bem entre André e
Anna, mais ainda com Anna e Claire. E Violet parecia ter esquecido tudo. Foi
tudo muito rápido, os anos passaram rápido demais.
André nunca
dependeu de Anna, nunca havia precisado depender de ninguém. Mas, parecia que
realmente guardava um carinho enorme por ela. Um carinho que guardava por
Claire também, apesar de só fazer conta disso naquele exato momento em que a
observava chorar a perda de sua amada. Será que Claire conseguiria continuar em
frente mesmo com a perda de Anna? André não imaginava o quão doloroso seria.
Ambas se amavam bastante, e tudo isso parecia uma loucura. Uma armadilha do
destino.
Não, não
havia nada de divino nisso. André sabia do mesmo jeito que sabia que a Terra
naquele dia não rodou mais devagar, muito menos freou bruscamente na noite anterior.
André sabia que devem ter sido as circunstâncias, mas quais? Ele se perguntaria
isso, talvez, pelo resto da vida.
A chuva
caía intensa e André nem soube ao certo quando ela começou a engrossar.
Jornalistas e familiares de Anna foram embora logo, apesar de perplexos. Claire
ficou ali mais alguns instantes. Violet já havia saído. A noite passou devagar,
nenhum dos três conseguiu dormir. Todos levantaram no meio da madrugada e como
se uma lembrança vaga navegasse pela mente de todos eles, os três foram para o
bar que Anna gostava de frequentar. A mesa que ela sempre gostou de sentar
estava vazia e todos os três sentaram-se ali. Um após o outro, sem dizer uma
única palavra. Apenas se olharam. Riam e choravam. Olhando nos olhos uns dos
outros. Riam ao mesmo tempo. Choravam ao mesmo tempo. Como se partilhassem da
mesma lembrança feliz ou triste, no mesmo instante em que a memória dava uma
alfinetada.
(Y.S.S. – 08/05/13)