terça-feira, 25 de junho de 2013

Lembranças de André: perdendo Anna

Já estava ficando escuro. Algumas estrelas no céu eram apenas o atraso de sua luz antes de extintas, mas, pequenos como somos as víamos brilhando como se sempre estivessem lá. Menor ainda era o brilho dos postes que iluminavam a avenida em que André andava a passos curtos, mórbidos. As pessoas passavam e pareciam borrões, ele parecia vagar numa estrada sem fim, como se andasse e não houvesse calçada, caminhava sobre nada e mesmo assim seguia um caminho.
            Só conseguia pensar na noite anterior, quando recebeu a notícia pelo telefone. Claire o havia ligado milhares de vezes, mas, como estava concentrado na revelação de algumas fotos não quis atender. Foi ingênuo e prepotente. Claire não era de ligar para ele. Depois de toda a história que envolvia ele, Anna, Claire e Violet. Claro, claro que Claire sabia sobre Violet e Anna. Porém, ela nunca quis se aborrecer com Anna, na verdade, nunca conseguiria. Talvez, no dia em que ligou para André, ela estivesse.
             O dia havia passado lento para André, como se a Terra finalmente decidisse não se apressar tanto em rodar sobre si mesma. Mas, tudo possui uma reação, e o Sol queimava mais forte. André, já não estava aguentando o calor quando saiu de casa e sabia que quando anoitecesse faria bastante frio, levou seu casaco. Ao descer no estacionamento tinha percebido que havia esquecido as chaves do carro, não se importou, foi andando mesmo. Vagava, vagava pelos seus pensamentos. Vagava e a cada ideia vaga navegava uma lembrança vaga.
            Cada uma dessas lembranças era uma alfinetada, alfinetada num balão d’água. Estoura rapidamente e enche outro recipiente de memórias, fluídicas memórias que conseguem arrastar como um rio raivoso ou moldar lentamente como se pingasse do teto de uma caverna escura. Ultimamente tudo parecia uma caverna escura.
            André lembrou-se da ligação da noite anterior, doía o peito. Lembrava-se da voz de Claire chorosa e com raiva, muita raiva. Ela vociferava que ele era um cretino por não ter atendido, falou que ele não deveria ter feito aquilo, falou que ele só se importava com as fotos e com mulheres bonitas e gostosas para fotografar, mas se esquecia de quem realmente importava. Gritava ao telefone que ele só conseguiu novamente ter um boom na carreira, além do sucesso já conquistado, por conta do tão aclamado book com a linda mulher de seios rosados, pele rosada, lábios rosados. Tudo que ele havia reconquistado foi com a ajuda de Anna. Ela gritava como Anna era importante para a vida de todos, inclusive de Violet. Ela gritou que Anna estava morta!
            Foi nesse exato instante que para André o mundo freou bruscamente, ele foi empurrado para fora do mundo e lá permaneceu num abismo. Anna estava morta. Mal conseguiu distinguir seus pensamentos das palavras de Claire. Balbuciou uma pergunta simples: “como?”.
            Tudo o que sabiam era que Anna havia cometido suicídio. Tomou uns remédios numa grande dosagem. Mas, aparentemente depois de não tolerá-los os havia vomitado, mas, ainda com os sentidos bastante afetados decidiu cortar os pulsos. “Era a coisa mais óbvia e estupidamente idiota de se fazer, morrer como uma drogada desequilibrada, uma adolescentezinha de merda que acha que ser roqueira e morrer nova trará algum ensinamento para seus pais, ou para o mundo! Tola, tola, mil vezes tola!”, era tudo o que André conseguia pensar no momento em que Claire contava-lhe a notícia. Ele definitivamente não achava isso dos adolescentes com problemas familiares, só não conseguiu impedir suas sinapses de responderem ao extinto de identificar o ato de Anna com algo que discordava, mas de algum modo achava realmente estúpido. Responder como ele se sentia era difícil. E ainda é.
            Ele andava sem chão na tentativa de fazer a Terra girar um pouco mais rápido e passar logo para o outro dia. André caminhava como se estivesse sem rumo, mas, seus pés sabiam para onde o levar. Era para o cemitério onde Anna seria velada, ou melhor, o corpo de Anna.
            André lembrou-se quando e como conheceu Anna. Anna era jovem, tinha dezenove anos e pretendia subir na carreira, precisava ajudar sua família, moravam no subúrbio. Desde pequena era muito bonita e chamava a atenção por onde passava. Logo aos quinze anos foi convidada para participar de algumas propagandas de produtos pequenos. Perfumes, loções para banho, hidratantes. Fez fotos no parque, praças, teatros, e no chuveiro. Nunca quis posar nua. Aos dezoito anos Anna montou uma teoria: o subúrbio era o lugar de mulheres bonitas, majestosas, lindas e com sex appeal. Aos dezenove, sabia que tinha que deslanchar como modelo, e soube do trabalho de André. Ele era um fotógrafo renomado, tinha batalhado muito para chegar onde estava, e tinha apenas trinta anos.
            Quanto mais lembrava, mais as lembranças o torturavam. Aquele dia foi infinitamente especial, pois, nalgum momento ele decidiu dar alguns zooms nos seios de Anna, eles eram médios em formato de gota, mamilos rosados e com a pele clara. André gostou do tom rosado. Anna era clara, não muito branca, nem puxando para um tom amarelado, era clara. André soube aproveitar muito bem o tom de pele dela. Soube aproveitar melhor ainda o resto da noite, pois, Anna não voltou para casa, a neve não iria deixar de qualquer jeito. Os dois, naquele estúdio, ali no chão mesmo, transformaram em cores o que através da janela era o branco da neve.
            Seus pés finalmente pararam. Ele despertou, olhou para os lados e tinha alguns jornalistas acompanhando tudo com um bloco de notas, o padre que ia dizer algumas palavras, a família de Anna e Claire junto com Violet. Mesmo com tanta escuridão e ameaça de chuva, André via claramente a beleza naquelas duas mulheres.
            Lembrou-se de quando conheceu Violet naquele bar, ela quem havia ido falar com ele, o reconhecera. Violet estava com um novo vestido vermelho. Ela gostava da cor, não usaria nunca violeta, seria muito redundante. Ela não gostava de redundâncias. Era levemente decotado e facilitava na sensualidade. Seu corpo era lindo, magro e não muito volumoso, mas com curvas, com seios e um pouco de bunda, pouco. Seus lábios tinham um peculiar tom rosado. Tão peculiar e tão rosado que Violet normalmente não usava batons, preferia deixar sempre seus lábios umedecidos. Seu olho era verde claro, mas, ela sabia usar o olhar para realçar a cor. O verde era claro, mas invasivo, observador. Na noite anterior ela percebeu, logo ao entrar num pub, um homem sentado estrategicamente numa das pontas do estabelecimento. O observou por quase duas horas e após ter colhido informações suficientes e lembrado de informações suficientes foi até a mesa onde estava o fotógrafo reconhecido e puxou conversa. Depois de algumas horas no pub, André convidou-a para um café em seu apartamento, que também era seu estúdio.
            O fator gustativo do café mostrou seu valor, não permitindo que nem Violet nem André terminassem a noite na mão. O frio da noite facilitou a aproximação a fim de calor, calor humano. A embriaguez facilitou na decisão de André de tocar na cintura de Violet, um toque preciso, na parte mais sensível da cintura dela. Arrastou os dedos pelas costas, fazendo o caminho inverso da costura, chegando à alça, despiu-a. Parou ali, olhando os seios de Violet, lindos. Formato, volume, cor, sinais, tudo simetricamente preparado para excitar o paladar.
Violet viu a cena, levou seu seio desnudo aos lábios de André. O tempo mudou a rotação, o que era devagar virou rápido, extremamente rápido, insano e profundamente caótico. Logo a mesa não iria aguentar o peso e os movimentos bruscos, caíram no chão. Mudaram de posições, trocaram prazeres, faziam o que a embriaguez permitia. Sorte que a “dose” de café foi generosa, Violet quase não estava sobre efeito alcoólico, a adrenalina tomou conta do corpo, o prazer tomou conta do corpo. O suor respingava no chão, as mãos suadas não se sustentavam paradas e escorregavam frequentemente. Rapidamente estava na cama, rapidamente repetiam tudo, tudo. Durante a madrugada, ainda acordados conversavam, a partir da conversa testavam. Testavam-se, trocando experiências, prazeres, gostos, tons, fluidos e cheiro. O atrito descamava a microscópica crosta de tecido morto da pele de ambos, aonde se fixava o cheiro dos perfumes, logo o cheiro iria se impregnar na cama, assim como os fios de cabelos negros de Violet no travesseiro.
            Foi tudo muito rápido, o modo como a lembrança passou por sua mente. Claire olhava para ele, seu rosto estava abatido, tanto quanto o de Violet e o dele mesmo. Ninguém conseguia imaginar o que houve e aparentemente tudo estava bem entre André e Anna, mais ainda com Anna e Claire. E Violet parecia ter esquecido tudo. Foi tudo muito rápido, os anos passaram rápido demais.
            André nunca dependeu de Anna, nunca havia precisado depender de ninguém. Mas, parecia que realmente guardava um carinho enorme por ela. Um carinho que guardava por Claire também, apesar de só fazer conta disso naquele exato momento em que a observava chorar a perda de sua amada. Será que Claire conseguiria continuar em frente mesmo com a perda de Anna? André não imaginava o quão doloroso seria. Ambas se amavam bastante, e tudo isso parecia uma loucura. Uma armadilha do destino.
            Não, não havia nada de divino nisso. André sabia do mesmo jeito que sabia que a Terra naquele dia não rodou mais devagar, muito menos freou bruscamente na noite anterior. André sabia que devem ter sido as circunstâncias, mas quais? Ele se perguntaria isso, talvez, pelo resto da vida.
            A chuva caía intensa e André nem soube ao certo quando ela começou a engrossar. Jornalistas e familiares de Anna foram embora logo, apesar de perplexos. Claire ficou ali mais alguns instantes. Violet já havia saído. A noite passou devagar, nenhum dos três conseguiu dormir. Todos levantaram no meio da madrugada e como se uma lembrança vaga navegasse pela mente de todos eles, os três foram para o bar que Anna gostava de frequentar. A mesa que ela sempre gostou de sentar estava vazia e todos os três sentaram-se ali. Um após o outro, sem dizer uma única palavra. Apenas se olharam. Riam e choravam. Olhando nos olhos uns dos outros. Riam ao mesmo tempo. Choravam ao mesmo tempo. Como se partilhassem da mesma lembrança feliz ou triste, no mesmo instante em que a memória dava uma alfinetada.


(Y.S.S. – 08/05/13)