sábado, 22 de setembro de 2012

Lembranças de Anna: Claire encontra André


Em um desses acontecimentos mundiais de moda, que podem acontecer na França, Inglaterra, Nova York ou Berlim, Claire estava procurando por Anna. Estava trabalhando, era jornalista de renome numa desses jornais reconhecidos mundialmente por ter notícias que valessem a pena serem lidas. Mas, porque uma jornalista de um jornal de renome estava cobrindo um evento de moda? Claire perguntou isso ao seu editor chefe e teve como resposta um: VÁ LOGO, DEPOIS TE MOSTRO O MOTIVO. Para Claire era difícil fazer reportagem sem saber o que estava investigando, sem saber um tema, um objetivo, quem entrevistar, e o que perguntar.
Decidiu fazer anotações acerca do evento completo. Era intrigante como um evento de moda conseguia servir de imã para tanta gente estranha. Eram maquiagens extravagantes com cores mais extravagantes ainda, cortes de cabelo representando montanhas, animais, ondas do mar, coisas de outro mundo. E as roupas? Incrivelmente loucas e totalmente desconectadas com o mundo atual, pensando num futuro distante aonde o céu não será mais o limite.
Parece que tudo é de um mundo futurístico predestinado a vir antes do tempo, e amanhã todos estarão se vestindo daquele jeito, claro que se tiverem alguns mil euros. Definitivamente Claire não sabe o que faz ali. Ela procura, procura e não acha nada. Procura, procura e não acha nada. Havia estudado na universidade algo sobre pesquisa antropológica, sociológica, psicologia social e de como aquilo poderia ajudá-la a pensar na entrevista de moda. Tinha lido algo sobre o “mundo líquido” da pós-modernidade, mas, tudo aquilo parecia mais as histórias de Isaac Asimov ou Aldous Huxley. Entre este turbilhão de ideias, Claire avistou Anna.
Fazia alguns meses que elas não se falavam. O “(a) incidente” da ultima vez que elas se encontraram foi estranho para as duas. Foi difícil perceber que tinham transado, Anna era como uma melhor amiga, uma mulher linda e irresistível, que estava no topo do sucesso depois de ter deslanchado através do ensaio fotográfico feito por André. Mas, é claro, fazia algum tempo que Claire estava perdidamente apaixonada por Anna, ela nunca tinha visto a amiga nua, e viu pela lente de André. André tinha um olhar excepcional para a beleza feminina, era sensual e sexy sem ser ousado, era desejando sem salivar, era como se degustasse uma taça de vinho.
Para Anna a coisa foi mais complexa, Claire lembra bem como foi a reação na manhã seguinte ao acontecimento. Anna acordou com a calcinha dela no rosto, estava ainda de ressaca, mas conseguiu levantar os olhos e chamou por Claire. Uma vez com a voz baixa, na segunda um pouco mais alta, e na terceira já gritando: CLAIREEEEEE. Claire correu da cozinha, estava preparando um café da manhã caprichado, e foi para o quarto, Anna estava sentada na cama segurando a calcinha.
- O que diabos fizemos? – Anna perguntando com voz irritada e tom de quem não lembra nada, mas, lembrando tudo.
- Bem, começamos bebendo muito, depois, viemos para cá, depois começamos a tirar as roupas...
- Pode parar! – Anna interrompe Claire bruscamente – eu sei o que aconteceu, eu apenas quero entender porque aconteceu.
- Sabe, eu também não sei, iria te fazer a mesma pergunta, mas, com um tom menos agressivo que esse – Claire com certeza já sabia o caminho da conversa, ela iria pegar suas coisas e sair correndo dali deixando lágrima escorrerem no rosto.
- Bem, eu não faço a mínima ideia, senão não estaria lhe perguntando e qual o problema com meu tom, você tem de entender, nunca pensei que transaria com uma mulher!
- Dizem que para tudo existe uma primeira vez – Claire quase foi interrompida por Anna novamente por tentar justificar com uma besteira dessas, mas, logo ajeitou o ponto – mas, acho que essa justificativa não vale talvez minha cantada tenha sido boa, ou estávamos bêbadas demais para pensar, ou talvez você tenha me desafiado a algo, não lembro bem, sei apenas que queríamos aquilo, tanto que acordamos sem sentir dores, sem sentir medo ou dúvida, apenas querermos entender o caso. Estou certa?
- Em partes. Claire, você é minha amiga a anos, nunca imaginei isso de nós. Como podemos? Tudo bem, não tenho culpa, até acho que foi melhor ter tido essa primeira experiência com você, mas, foi tudo muito rápido e você, você parece estar com uma aura incrível, bem diferente de ontem. Você realmente gostou da noite, não que tenha sido ruim, mas, sei lá, como se já estivesse desejando tudo. Tudo estava desejado previamente.
- Anna, você está certa, eu estava te amando a algum tempo. – O silêncio demorou uma eternidade, mas, foi de apenas meio minuto (uma eternidade do mesmo jeito).
- Claire, como assim? Sempre fomos amigas, como assim? Se você, não pode ser minha amiga, também não deve existir amizade entre homens e mulheres!
- Calma Anna, você está confundindo tudo. Nosso, que dizer, meu caso foi particular. Eu sempre lhe vi como amiga, assim como com outras amigas. Você as conhece, mas, com você tudo foi diferente. Eu já estava caindo de amores por você antes mesmo de você ter aquele caso com o André, sabe, você tinha uma história intrigante, tinha uma conversa inteligente, tinha esse seu ar de menina nova, mas, com muitas experiências para dividir. Sei lá, você é encantadora e...
- Claire, para, para, PARA. – Ouvir aquilo de uma mulher era extremamente estranho para Anna, ainda mais vindo de Claire, sua amiga! – Sabe, eu gostaria de dizer que estou bem com tudo isso, ou que poderia lhe ouvir e procurar entender a situação, mas, na verdade gostaria que você saísse e me deixasse pensar.

            As palavras ainda zumbiam na mente de Claire, logo depois dessas palavras ela vestiu-se e saiu do apartamento e nem soube se Anna comeu aquele café da manhã todo especial com iogurte, frutas, torradas e patê de tomate seco. Bem, ela tentou esquecer tudo, mas era difícil, doía no peito pensar em Anna. Ao vê-la, sabia: o amor ainda existia, mas, será que ia ser correspondido, será que o olhar ia ser correspondido?
            Anna avistou Claire ainda de longe, mas, perto o bastante para Claire perceber a pupila de Anna se dilatando, o rosto contraia-se a fim de mostrar a surpresa e ao mesmo tempo a excitação de ver Claire. Deixando Claire animada, as duas caminharam uma ao encontro da outra. Estava a um palmo de distancia. Claire com uma vontade interminável de pedir desculpa e terminar a frase com um beijo, imaginando que Anna poderia retribuir o beijo. Mas, lembrou-se que todos ali conheciam Anna, e alguns ali reprovariam aquilo e alguns poucos dali iriam tirar fotos, fotos, vende-las e ganhar uma boa matéria com isso.
            A noite parecia mais escura, Anna olhava para Claire, e a única coisa que conseguiram falar antes de chamarem Anna foi um “Oi, como você está? Quanto tempo né? Porque você está aqui? Cobertura da revista ¬¬?”. Apenas poucas palavras, não falaram do principal, não falaram delas. Anna teve que ir se trocar, logo iria estar na passarela, com roupas estranhas, sem beleza, sem sensualidade. Claire foi fazer a cobertura.
            No começo do evento, Claire estava distraída, sem saber o que fazer, anotava tudo. Celebridades, estilistas renomados, e por fim foi ver os fotógrafos que faziam a cobertura. Eis que viu André. Sentiu aquela falta de ar que começa na barriga, aquele frio, seria difícil falar com Anna sabendo que André estava lá, será que eles voltaram nesses meses? Será que ele estava ali para falar com Anna e dizer que estava perdidamente apaixonado? Será que ele iria propor a ela outro ensaio fotográfico daqueles, nua? Claire não aguentaria nada disso. Era demais para ela, esboçou uma lágrima, mas, não poderia ficar assim, era tudo, por enquanto, imaginação.
            Quando tudo acabou, depois de ter anotado bastante, depois de ter prestado bastante atenção nos clicks de André, Claire foi falar com Anna. Ela e André chegaram na mesma hora, a insegurança era latente e a curiosidade também, o que ele queria com seu amor? O que? Anna ao ver os dois pediu para que esperasse, ia se trocar, tomar um banho rápido e iam sair para jantar, os três. Os três!
            Era um restaurante comum, porém, sofisticado, sentaram, pediram um vinho e começaram a conversar.
- Sabe Anna, faz muito tempo que não nos vemos, estava pensando em lhe convidar para outro ensaio, o primeiro causou muitos alvoroços e isso foi valioso para nossas carreiras, mas, dessa vez seria diferente. Estou orientando uma jovem fotógrafa e gostaria que você estivesse no ensaio dela, seria bom para a carreira dela, sabe? Impulsionaria bastante – falou André, totalmente interessando na mulher chamada Claire, intrigante pessoa, que olhava para ele com uma curiosidade imensa.
- André, claro que aceito. Vocês já tem um motivo? – perguntou Anna, muito interessada no ensaio e na nova fotógrafa, mas, não queria demonstrar o interesse até porque Claire estava ali, o que ela acharia de tudo isso?
- Queremos trabalhar com vermelho e espelhos, dar cor a tudo, brincar com as perspectivas e com a tonalidade da pele e das roupas, sempre usando roupas – André percebeu que depois que falou de roupa o semblante de Claire pareceu menos preocupado, como se aceitasse a proposta por Anna, como se não quisesse ver Anna nua novamente.
- Claro, interessante, mas, deixe-me lhes apresentar direito, André está é Claire, uma amiga minha de longas datas e jornalista renomada. Claire este é André e não exige apresentações demoradas.
- Prazer Claire, então você é a jornalista fantasiada de mulher bonita? Tive medo de que isso acontecesse um dia, e aqui estou, incrivelmente sentado ao lado de uma jornalista – André demonstrou logo o desconforto de estar ao lado de uma jornalista, não gastava de falar e tudo estar a um passo de sair na mídia.
- Calma, André, eu não trabalho nessas revistas de fofocas não, e também não venderia informação alguma. Estou aqui cobrindo a semana de moda, apesar de não saber o por que, engraçado né, fazer a cobertura de algo sem saber o motivo.
- Sem problema Claire, às vezes tiro fotos e só descubro o motivo que as tirei anos depois, quando estou vasculhando o arquivo. É interessante, tenho uma foto da Anna que nunca publiquei em nada – André começou a jogar verde.
- Tem? – Claire mostrou-se curiosa
- Tem? – Anna mostrou-se preocupada
- Tenho sim, e para uma digo que a foto está linda e para a outra digo que não a divulgarei. Mas, para a primeira tenho mais coisas para falar – André dirigiu-se diretamente para Claire – Acontece, recém-conhecida Claire, que a Anna não sabia que tinha tirado essa foto porque ela estava dormindo na hora. Para mim, foi a foto mais linda que fiz dela. Deixei uma original e outra em P&B (preto e branco), a segunda ficou melhor, tem uma luz da janela vazando um pouco e refletindo nos cabelos dela, delicadamente deitados em seu ombro. Com certeza, a foto mais linda.
- Imagino – e imaginava mesmo, Claire estava explicitamente com ciúmes, era difícil conter aquilo tudo, nessas horas queria ser homem e poder aproveitar esses tempos com Anna, nasceu mulher por ironia do destino. Dirigiu-se para Anna – sabe Anna, faz tempo que não nos falamos, estou com um leve pressentimento que nossa amizade está por agua abaixo.
- Ei, o que houve com vocês? Adoraria ouvir essa história – tudo para André era motivo para inspiração fotográfica, tudo.
- Claire, eu acho que não é hora para termos essa conversa e André nem se anime, você não nos usará como motivo para suas histórias fotográficas – Anna estava nervosa, não queria falar de nada disso.
- É a hora perfeita para essa conversa, o André está aqui ele é o culpado de tudo – disse Claire olhando para André e vendo ele se espantar com a notícia.
- Como assim culpado? O que eu fiz? Nem lhe conhecia – André estava parecendo curioso e chateado, mas na verdade escondia o interesse.
- Depois que ela teve aquele affaire com você tudo desmoronou, a carreira dela deslanchou e eu perdi uma amiga. Mais que isso, eu perdi um futuro amor que só era preciso conquistar como a noite que passamos juntas demonstrou – Claire falou pelos cotovelos e bagunça estava feita.
- Vocês dormiram juntas? Tipo sexo e tal? Não acredito? Por isso as coisas estavam estranhas – André também falou demais.
- Estranhas? Como assim coisas estranhas? – Claire perguntou a André, Anna estava atônita, não podia fazer nada, estava impotente.
- Você não percebeu? A Anna vem tendo casos repentinos com outras mulheres a alguns meses, e isso se deve a você ter conquistado ela por uma noite e transado com ela – André abriu o jogo.
- Como assim? Anna você não me disse nada disso – Claire não conseguiu conter o choro, sempre foi uma mulher forte, determinada, mas, quando era sobre o coração a lágrima sempre escapava.
- Claire e André, eu não deveria ter juntado os dois. Claire a história é complicada, mas, resumindo você me mostrou uma forma nova de sentir prazer e não conseguir me conter, e provei mais vezes. Acho que estava me preparando para assumir algo com você. Estava prestes a me decidir disso, mas, o trabalho está tomando todo o meu tempo e eu também não sabia o que você iria achar, não sabia se ainda me amava – Anna falou desesperadamente vendo Claire chorar.
- E você acha que essas lágrimas são de ódio? Claro que ainda te amo, mas, não consigo entender porque você nunca me disse nada a respeito de outras mulheres – Claire estava com a voz trêmula por conta do choro.
- Isso é óbvio, ela precisava ter experiências diferentes para saber se era isso mesmo que ela queria, não adiantava ficar apenas com o seu sabor, ela tinha de comparar seu sabor com o de outros, do mesmo modo que provamos grãos diferentes de café para saber qual o mais agradável ao paladar – André interrompeu a conversa.
- Não venha com essa sua conversa de boêmio, conheço milhares de pessoas que se conheceram e viveram uma vida juntos sem precisar provar de mais ninguém – Claire responde para André.
- Eu também conheço milhares de pessoas que por viver uma vida juntos e não provarem de mais ninguém acabam se separando cedo ou tarde, nenhum dos dois casos é regra ou exceção. As coisas simplesmente acontecem à depender de cada indivíduo, cada um pensa de uma forma diferente, padronizar isso é difícil e impossível. Você está pensando com seu sentimento e não racionalmente – disse André de forma contundente.
- Você está certo, ela precisava de tudo isso, ela precisava testar-se, degustar, apreciar outras safras, outros sabores, outros desejos e cheiros. Até descobrir que o meu cheiro era o melhor, gosto e safra perfeitos – Claire olhou para Anna, esperando uma confirmação.
- Você está certa minha linda – Anna levou sua mão ao rosto de Claire, enxugava as lágrimas, alisava a face carinhosamente – Você, você me ama e é isso que importa, estou disposta a provar uma vida contigo, sem medo de vivermos nosso sentimento sem medo e constrangimento. Eu tive de fazer isso, tive de provar, me lançar ao sentimento, ao desejo, aprendi e mudei a forma de pensar sobre várias coisas. Aprendi, cresci, e sei que agora posso viver junto a ti.
- Agora as coisas estão começando a mudar de foco, pois, vejo que a culpa foi de Claire – disse André, levando a conversa para outro sentido.
- Como assim? – Anna e Claire perguntaram juntas.
- Desde essa tal noite que vocês tiveram a Anna não aceita mais convites meus para fotos com nu artístico. Ela parece estar “escondendo” a beleza dela, escondendo seus sentimentos, falou pouco comigo durante esses meses, costumávamos ser amigos de verdade, trocar palavras de conforto e histórias de vida. Tanto que nem pude falar para ela de Violet.
- Tudo bem, eu encaro a culpa e encaro com orgulho de saber que é verdade – Claire olhou para Anna e tudo era verdade, os olhos dela diziam.

            A noite continuou agradável e Claire permitiu-se esquecer do motivo de ter ido ao evento de moda, mas, existia um motivo? A noite continuou agradável, mas, André pensou se realmente alguém era culpado por algo. Culpa? Não houve culpa alguma, eles só colocaram assim por faltarem palavras e entendimento. Normal de pessoas é procurar culpa nas coisas, procurar erro em tudo. Não houve erro e muito menos culpa. Houve vontade, desejo, vontade de potência e de experimentar. Houve prazer. André conhecia os limites do corpo de Anna, mas, conhecia os limites da Anna sem ter dormido com outras mulheres, ela tinha aprendido coisas diferentes, seu corpo havia aprendido coisas diferentes e os limites com certeza mudaram. Claire conhecia Anna e seus limites, ela foi quem primeiro mostrou a existência do prazer num sexo entre mulheres. Anna sabia que Claire havia esperado por ela, conhecia os limites do corpo de Claire, mas queria mostrar o que havia aprendido. Anna sabia que André agora seria um grande amigo delas, seriam íntimos e trocariam confidências. A noite caminhou agradável, mas, Anna estava interessada na tal de Violet.

(Y. S. S.)

sábado, 15 de setembro de 2012

Lembranças de Claire: "de como olhar com os olhos"


Claire nunca se satisfez em ir a um pub, pedir um chopp e sair de lá em poucas horas. Ela gostava de ver mulheres. Todas elas, das mais recatadas e patricinhas até as mais desengonçadas. Adorava aquelas saias floridas combinando com blusas básicas e pulso cheio de pulseiras e um brinco de pena apenas na orelha esquerda. Mas, também lambia os lábios quando adentrava o olhar num belo decote, esperando a beldade passar, olhava o formato da bunda que a calça jeans fazia, olhava atentamente na bolsa com cores extravagantes, mas, pouco reparava no homem ao lado que normalmente era um jovem bem sucedido ou um coroa enxuto metido a “boyzinho” e malhado. Eles nunca eram interessantes.
            Quer dizer, já foi um dia. Foi quando Claire estava bolando sua teoria, “de como olhar com os olhos”. Para ela os homens não sabiam olhar uma mulher, eles nunca conseguiam absorver a totalidade da sensualidade feminina porque a castravam antes mesmo de ser liberada. Castravam pelo processo “sujo” de olhar invadindo aquele ser majestoso. É simples, o homem não olha com os olhos, olha com a cabeça inteira. Toda mulher que passa por um homem o faz quase quebrar a cabeça, pois, este “bendito” gira a cabeça quase 180 graus para ter “a melhor vista” da traseira da garota. Isso já é invasivo, já é atordoante, já se torna inconveniente o suficiente para a linda mulher parar de andar com leveza e agir com mais pressa, parar de jogar o cabelo e se preocupar em prendê-lo e despistar a atenção para algo na bolsa.
            Havia também o retardo no olhar. O homem só olhava para o que queria olhar da mulher enquanto falava com ela, era difícil conversar com um homem e perceber que ele estava prestando atenção mesmo era nos seios, no decote, nos lábios. Tudo bem que às vezes a vontade de beijar lábios carnudos é incontrolável, mas, para Claire um homem nunca chegaria ao beijo agindo daquela maneira. As mulheres não tinham retardo algum, elas olhavam, dissecava o homem completamente, e quando iam falar com eles já conhecia aquele corpo de olhos vendados, era só aproveitar a conversa preliminar de uma noite fogosa.
            As mulheres usam suas amigas para averiguar como o homem que está atrás dela – que por sinal está de frente para a amiga – sem precisar demonstrar que se interessou nele. Os homens, infelizmente, só sabiam pedir a opinião do amigo para saber se determinada mulher era “gostosa” ou não. Para Claire isso era uma falácia, pois, como saber se algo é gostoso sem ter provado? É como olhar para um bolo de chocolate, extremamente confeitado com muito recheio e na hora de levar o garfo à boca descobrir que de tão doce o bolo é intragável!
            O homem se aprendesse a usar os olhos com eficácia poderia mostrar o interesse sem ser invasivo ou poderia apenas tarar sem constranger e castrar a sensualidade da mulher observada. Ficaria mais expert ainda se usasse a visão lateral, é uma ótima forma de evitar girar a cabeça à 90 graus, e se soubesse usar uma superfície refletora, seja ela qual for – espelho, retrovisor, vidro – poderia olhar com o mesmo efeito de estar virando a cabeça à 180 graus.
            Claire sofreu e ainda sofre com esses “olhares de cabeça”, ela se impressiona como outras mulheres ainda se deixam levar por esse tipo de olhar. Quase nenhum homem “descobriu” ou “aprimorou-se” nessa forma feminina de olhar com os olhos. Nunca foram mulheres, muitos e muitas dirão, porém, todas aprovam o tipo de olhar. “Não é todo o dia que eu quero me ver despida pelo olhar de um homem que não soube ‘disfarçar’ a virada da cabeça”, “Isso é totalmente deselegante”. Era como Claire pensava, era como muitas mulheres pensavam, pois, “Apesar de gostar de me sentir desejada, tenho medo, o olhar parece não se conter, parece me estuprar”. É castrador, viola, é constrangedor, é horrível.
            As mulheres poderiam ensinar aos homens, é claro! Mas não daria certo. Eles aprenderiam demais sobre as mulheres, deixem as mulheres como estão, com a sensualidade, com a sexualidade delas, intactas, sendo castradas em breves milésimos de segundos. Pois, depois de castradas, a sensualidade volta, e volta tão perfeita que consegue fixar o olhar de Claire, é difícil desgrudar, é difícil deixar passar.
Ao som de alguma música instrumental o pub ia lotando, lotando. Pessoas iam à caça, pessoas iam afogar mágoas, pessoas iam relaxar após o dia puxado de trabalho, pessoas iam se encontrar e conversar, pessoas iam achar um par para passar a madrugada transando, relaxando, bebendo ou fumando, bebendo e fumando, bebendo e fumando e transando. Era assim que Claire as via, com passos pré-programados, ínfimos passos pré-programados. Claire gostava de misturar, modificar as coisas, abrilhantar a noite, tudo com requinte, com um jeito especial. Todas as noites eram especiais, principalmente na véspera de um final de semana.
            Na mesa ao lado estava um casal, um homem de barbas à fazer, com cabelos castanhos bem penteados e bem cortados, lisos e freneticamente ajeitados. Roupa casual, com tons desinteressantes, mas devia ter um “papo” interessante. Era fácil prever, ele iria jogar toda a conversa na mulher que o acompanhava, iria prometer algumas safadezas para aquela noite, dizia que tem carro – o que garante o conforto do transporte – mas, não evitaria beber alguns drinques, pois, era exatamente a leveza do álcool que o fazia dirigir com mais ânimo. Ela concordaria em deleitarem-se na aventura, os dois iriam para a casa dele – convenientemente um solteiro que já mora sozinho apesar da pouca idade – continuariam bebendo algo, ele iria fazer uma “comidinha” – a de sempre é claro, pois, ele só aprendeu uma coisa para fazer – ela iria achar ele um ótimo cozinheiro. Ele, enquanto abria a garrafa de vinho, iria falar dos ingredientes sofisticados que usava nas comidas, mal sabendo ele que de sofisticado a pimenta indiana não tem nada, mera invenção da história, por fim ele colocaria a mesa. O vinho se encarregaria sozinho de fluir a cena. Era do vinho o aroma delirante, era do vinho o sabor da volúpia do momento, do apetite insaciável do lábio alheio. O tom deixado nos lábios exigia saliva, a saliva incitava o beijo. Era do vinho a embriaguez responsável por levar os dois corpos à cama, espalhar roupas pelo chão, suar intensamente, suar intensamente, suar intensamente, suar intensamente, cansar intensamente e dormir. Acordar ainda na madrugada, beber litros d’água e correr para o carro ainda sem calçar o salto alto, voltar para casa no escuro ainda sentindo o órgão rígido alheio.
            Era fácil de prever, Claire gostava de fazer o imprevisível, gostava de modificar a ordem das coisas. Então pediu para o garçom mais duas doses do que o casal estava bebendo, moveu-se levemente para a mesa, ofereceu as bebidas e sentou-se com eles. Depois de algumas horas o homem já estava desconcertado. Ele imaginava que havia ganhado na loteria e iria pela primeira vez dormir com duas mulheres, o sonho de toda a virilidade masculina. De toda a virilidade tola, pois, o normal era o homem não conseguir dá conta das mulheres e elas acabarem cansando dele, e depois dele dormir elas faziam a festa. Claire sabia, a festa dessa noite era dela e daquela linda mulher.
            A conversa fluía fácil, Claire sabia mexer no cabelo apenas nas horas indispensáveis, pois, era no pescoço a concentração de perfume, o cabelo fazia um “efeito estufa” e o cheiro ficava ali guardado, era só mexer no cabelo na altura dos ombros e o cheiro tomava conta de todo o ambiente num máximo de meio metro de distancia, alcance do olfato da garota. O homem estava desconcertado. Desconcertado saiu e nem foi percebido, Claire e a mulher nem perceberam e quando se deram conta outros dois drinques tinham acabado de chegar à mesa. Quem o segurava era um homem moreno quase negro, não muito forte, nem muito definido, mas bem vestido. Os tons combinavam muito bem, o a camisa estava com o botão do pescoço aberto, libertando uma visão translúcida do peitoral dele e um pouco da fragrância do perfume. Tinha os cabelos cortado bem curto, e um olhar penetrante. Claire, antes mesmo de ele pedir, já tinha dito com os olhos que ele poderia sentar. Ele sentou, aquela figura enigmática disse que só queria observar, todas as outras mesas estavam com casais ou então com pessoas sozinhas e ele não estava muito a fim de conversa, só queria se sentar.
- É claro, mas, você não acha estranho sentar-se, nos trazer bebidas e querer que acreditemos que tudo não passa de uma vontade de sentar? – Claire pergunta meio maravilhada pela beleza do homem, meio chateada por ele ter interrompido a cantada.
- Não que eu quisesse me intrometer, mas, esse é um bom modo de chamar a atenção, principalmente quando a bebida não foi solicitada ao garçom previamente, pois, se fosse vocês nem olhariam para quem colocava as duas taças na mesa.
- Você está certo, mas, qual o seu interesse de observação? – A mulher morena pergunta para ele.
- Às mulheres é claro! E mais evidente ainda, observando os homens pisando na bola constantemente, são brutos, não conhecem nada de sedução, nada sobre uma boa conversa, nada sobre nada. Mal, sabem olhar para as mulheres, vivem impedindo elas de serem elas mesmas, sempre querendo chegar logo lá, sempre falando das pernas dela, dos lábios, e elas entendendo que eles só querem sexo. Elas também só querem isso, mas, não invadem os homens para isso.
- Você, você já me ouviu falar da minha teoria? – Claire pergunta meio desconcertada.
- Não, claro que não garota, nunca lhe conheci, quer dizer venho lhe vendo desde que chegou, mas, nunca falei com você.
- Me observando? Como assim? Como não percebi? – Claire, gagueja um pouco, ela sempre percebia quando olhavam para ela – Bem, isso não importa agora, você precisa ouvir sobre a “De como olhar com os olhos”.
- Entendo perfeitamente – O homem estava entusiasmado, Claire tinha organizado tudo o que ele pensava sobre a falta de preparo do homem para a sedução, tudo. Ele não ouviu atentamente os detalhes, os exemplos, tudo. Ouviu atentamente, ouviu e sentiu que aquela noite iria se prolongar, pois, o olhar de Claire modificou-se, o foco estava nele e não na garota ao lado dela.
- Veja só – Claire falou – você disse que me observou desde quando cheguei, conte-me como não percebi isso?
- É simples Claire – falou a mulher morena – ele, antes mesmo de você contar, já “olhava com os olhos”.
- Exatamente, Claire. Vi-lhe chegando com os cabelos presos e um blazer, entrou no banheiro e saiu de lá sem o blazer e com os cabelos soltos. Logo pensei que para fazer isso no banheiro você deve ter lavado o rosto, retocado a maquiagem, e colocado perfume no pescoço, apenas duas baforadas de puro perfume – o homem olhava atentamente no olhar de Claire, atentamente, penetrava por entre a íris, uma porta para o convencimento.
- Fale mais, fale mais – Claire sentiu-se molhada, isso nunca havia acontecido, era excitante.
- Ficou sentada, olhando as pessoas como eu. Percebeu a mediocridade do gênero masculino e na incapacidade deles de seduzir, percebeu que as mulheres desistiram de lutar contra isso e hoje se lançam sobre cantadas bestas, e as usam como piadas entre as amigas. Percebeu o casal na mesa ao lado, percebeu a inexperiência do homem que estava aqui anteriormente, decidiu mostrar a ele como se faz e ofereceu um drinque, e desde então vem tentando convencer essa linda mulher a ir para sua casa, apesar dela não ter percebido que você já a desejou e fantasiou coisas.
- Como assim? Ela estava me seduzindo? Eu só pensei que tinha arrumado uma companheira de bebidas, por hoje, ou talvez por algum tempo, eu, eu, estou sem palavras – a mulher morena disse olhando para Claire, quase não acreditando.
- É verdade – a voz de Claire já estava trêmula, mal conseguia conter a excitação – sabe minha linda, percebi você e decidi investir, você estava quase indo ao meu apartamento e lá o vinho se encarregaria do resto, sempre é assim. Porém, esse lindo homem veio para estragar tudo, pois, ele saque que eu gosto do que ele gosta.
- Sei sim, por isso, vim oferecer um vinho em minha casa, sem compromisso. Só para terminar essa conversa em paz, com menos barulho, com mais privacidade e de forma mais confortável. Prometo que não farei nada demais, apenas pretendo conversar.
- Eu topo! – Claire não se continha, logo ficou em pé, pegou a bolsa, ajeitou o vestido, e soltou o cabelo novamente, deixando escapar o perfume.
- Eu ainda não estou entendendo tudo isso, mas, eu topo – a mulher morena falou – vocês se quiserem fazer algo, façam entre si.

            Ao chegar à prometida casa, confortável e sensual prometida casa, Claire observou lentamente. Viu um brinquedo de criança perto do sofá da sala foi esquecido ali por alguém, ela foi pegou o brinquedo e mostrou para o homem, pediu uma explicação, pois, era evidente que sua excitação não duraria mais um segundo se em algum quarto estivesse dormindo uma criança de no máximo seis anos. Logo ficou esclarecido que aquele belo homem já tinha sido casado, e a filha ficava com ele alguns dias da semana, mas, naquela noite ela não estava. Abriram o vinho, e Claire parecia mais excitada com aquele homem, que por cima parecia ser um pai atencioso.
            O vinho realmente encarregou-se do trabalho, logo Claire e o homem convenceram a mulher morena de irem os três para a cama. A cama horas parecia pequena para os três, hora parecia enorme. As roupas se confundiam no chão e mãos se confundiam na pele. Tons misturados, desejos misturados. Noite surpreendente, porém, não houve quem acordasse pela madrugada e bebesse litros d’água e corresse para o carro. Eles ficaram ali, a experiência foi saborosa demais para provarem apenas uma única vez.
            A madrugada varou o dia, o dia varou as refeições, o apartamento estava com as cortinas fechadas e assim elas continuaram. Três corpos nus andavam pela casa, cozinhavam, brincavam, sorriam, assistiam filmes, jogavam-se na cama. Um fim de semana diferente. Confortável.
            Claire lembrava-se perfeitamente daquele dia, foi um dia diferente. Foi o primeiro homem que ela conheceu que sabia “olhar com os olhos”, o primeiro homem que além de cor tinha sabor de café. Aquele sabor quente, suave e forte ao mesmo tempo, sabor misturado com perfume. Ele sabia “olhar com os olhos”, ele era diferente de outros homens, por isso a facilidade, não parecia estranho deitar-se com ele. Claire lembrava-se das cenas, recusava lembrar os nomes. Ela não sabia por que, mas, se recusava. Nem mesmo para Anna ela falou os nomes.
            Anna. Anna foi o motivo para tantas lembranças. Ela falou de sua teoria para Anna na noite anterior. Na verdade elas conversaram sobre muitas coisas. Aquela havia sido uma noite atípica, pois, estava acordada na cama de Anna, roupas espalhadas pelo chão, mas, sua calcinha estava delicadamente debruçada sobre o rosto de Anna. Claire olhava atentamente, com desconfiança de tudo. Olhou, Olhou, com os olhos, olhou. Deitou, abraçou Anna e dormiu.  

(Y. S. S.)