Claire nunca se satisfez em ir a um pub, pedir um chopp e
sair de lá em poucas horas. Ela gostava de ver mulheres. Todas elas, das mais
recatadas e patricinhas até as mais desengonçadas. Adorava aquelas saias
floridas combinando com blusas básicas e pulso cheio de pulseiras e um brinco
de pena apenas na orelha esquerda. Mas, também lambia os lábios quando
adentrava o olhar num belo decote, esperando a beldade passar, olhava o formato
da bunda que a calça jeans fazia, olhava atentamente na bolsa com cores extravagantes,
mas, pouco reparava no homem ao lado que normalmente era um jovem bem sucedido
ou um coroa enxuto metido a “boyzinho” e malhado. Eles nunca eram
interessantes.
Quer dizer,
já foi um dia. Foi quando Claire estava bolando sua teoria, “de como olhar com
os olhos”. Para ela os homens não sabiam olhar uma mulher, eles nunca
conseguiam absorver a totalidade da sensualidade feminina porque a castravam
antes mesmo de ser liberada. Castravam pelo processo “sujo” de olhar invadindo
aquele ser majestoso. É simples, o homem não olha com os olhos, olha com a
cabeça inteira. Toda mulher que passa por um homem o faz quase quebrar a
cabeça, pois, este “bendito” gira a cabeça quase 180 graus para ter “a melhor
vista” da traseira da garota. Isso já é invasivo, já é atordoante, já se torna inconveniente
o suficiente para a linda mulher parar de andar com leveza e agir com mais
pressa, parar de jogar o cabelo e se preocupar em prendê-lo e despistar a
atenção para algo na bolsa.
Havia
também o retardo no olhar. O homem só olhava para o que queria olhar da mulher
enquanto falava com ela, era difícil conversar com um homem e perceber que ele
estava prestando atenção mesmo era nos seios, no decote, nos lábios. Tudo bem
que às vezes a vontade de beijar lábios carnudos é incontrolável, mas, para
Claire um homem nunca chegaria ao beijo agindo daquela maneira. As mulheres não
tinham retardo algum, elas olhavam, dissecava o homem completamente, e quando
iam falar com eles já conhecia aquele corpo de olhos vendados, era só
aproveitar a conversa preliminar de uma noite fogosa.
As mulheres
usam suas amigas para averiguar como o homem que está atrás dela – que por
sinal está de frente para a amiga – sem precisar demonstrar que se interessou
nele. Os homens, infelizmente, só sabiam pedir a opinião do amigo para saber se
determinada mulher era “gostosa” ou não. Para Claire isso era uma falácia,
pois, como saber se algo é gostoso sem ter provado? É como olhar para um bolo
de chocolate, extremamente confeitado com muito recheio e na hora de levar o
garfo à boca descobrir que de tão doce o bolo é intragável!
O homem se
aprendesse a usar os olhos com eficácia poderia mostrar o interesse sem ser invasivo
ou poderia apenas tarar sem constranger e castrar a sensualidade da mulher
observada. Ficaria mais expert ainda se usasse a visão lateral, é uma ótima
forma de evitar girar a cabeça à 90 graus, e se soubesse usar uma superfície
refletora, seja ela qual for – espelho, retrovisor, vidro – poderia olhar com o
mesmo efeito de estar virando a cabeça à 180 graus.
Claire
sofreu e ainda sofre com esses “olhares de cabeça”, ela se impressiona como
outras mulheres ainda se deixam levar por esse tipo de olhar. Quase nenhum
homem “descobriu” ou “aprimorou-se” nessa forma feminina de olhar com os olhos.
Nunca foram mulheres, muitos e muitas dirão, porém, todas aprovam o tipo de
olhar. “Não é todo o dia que eu quero me ver despida pelo olhar de um homem que
não soube ‘disfarçar’ a virada da cabeça”, “Isso é totalmente deselegante”. Era
como Claire pensava, era como muitas mulheres pensavam, pois, “Apesar de gostar
de me sentir desejada, tenho medo, o olhar parece não se conter, parece me
estuprar”. É castrador, viola, é constrangedor, é horrível.
As mulheres
poderiam ensinar aos homens, é claro! Mas não daria certo. Eles aprenderiam
demais sobre as mulheres, deixem as mulheres como estão, com a sensualidade,
com a sexualidade delas, intactas, sendo castradas em breves milésimos de
segundos. Pois, depois de castradas, a sensualidade volta, e volta tão perfeita
que consegue fixar o olhar de Claire, é difícil desgrudar, é difícil deixar
passar.
Ao som de alguma música instrumental
o pub ia lotando, lotando. Pessoas iam à caça, pessoas iam afogar mágoas,
pessoas iam relaxar após o dia puxado de trabalho, pessoas iam se encontrar e
conversar, pessoas iam achar um par para passar a madrugada transando,
relaxando, bebendo ou fumando, bebendo e fumando, bebendo e fumando e
transando. Era assim que Claire as via, com passos pré-programados, ínfimos
passos pré-programados. Claire gostava de misturar, modificar as coisas,
abrilhantar a noite, tudo com requinte, com um jeito especial. Todas as noites
eram especiais, principalmente na véspera de um final de semana.
Na mesa ao
lado estava um casal, um homem de barbas à fazer, com cabelos castanhos bem penteados
e bem cortados, lisos e freneticamente ajeitados. Roupa casual, com tons
desinteressantes, mas devia ter um “papo” interessante. Era fácil prever, ele
iria jogar toda a conversa na mulher que o acompanhava, iria prometer algumas safadezas
para aquela noite, dizia que tem carro – o que garante o conforto do transporte
– mas, não evitaria beber alguns drinques, pois, era exatamente a leveza do álcool
que o fazia dirigir com mais ânimo. Ela concordaria em deleitarem-se na
aventura, os dois iriam para a casa dele – convenientemente um solteiro que já
mora sozinho apesar da pouca idade – continuariam bebendo algo, ele iria fazer
uma “comidinha” – a de sempre é claro, pois, ele só aprendeu uma coisa para
fazer – ela iria achar ele um ótimo cozinheiro. Ele, enquanto abria a garrafa
de vinho, iria falar dos ingredientes sofisticados que usava nas comidas, mal
sabendo ele que de sofisticado a pimenta indiana não tem nada, mera invenção da
história, por fim ele colocaria a mesa. O vinho se encarregaria sozinho de
fluir a cena. Era do vinho o aroma delirante, era do vinho o sabor da volúpia
do momento, do apetite insaciável do lábio alheio. O tom deixado nos lábios
exigia saliva, a saliva incitava o beijo. Era do vinho a embriaguez responsável
por levar os dois corpos à cama, espalhar roupas pelo chão, suar intensamente,
suar intensamente, suar intensamente, suar intensamente, cansar intensamente e
dormir. Acordar ainda na madrugada, beber litros d’água e correr para o carro
ainda sem calçar o salto alto, voltar para casa no escuro ainda sentindo o órgão
rígido alheio.
Era fácil
de prever, Claire gostava de fazer o imprevisível, gostava de modificar a ordem
das coisas. Então pediu para o garçom mais duas doses do que o casal estava
bebendo, moveu-se levemente para a mesa, ofereceu as bebidas e sentou-se com
eles. Depois de algumas horas o homem já estava desconcertado. Ele imaginava
que havia ganhado na loteria e iria pela primeira vez dormir com duas mulheres,
o sonho de toda a virilidade masculina. De toda a virilidade tola, pois, o
normal era o homem não conseguir dá conta das mulheres e elas acabarem cansando
dele, e depois dele dormir elas faziam a festa. Claire sabia, a festa dessa
noite era dela e daquela linda mulher.
A conversa fluía
fácil, Claire sabia mexer no cabelo apenas nas horas indispensáveis, pois, era
no pescoço a concentração de perfume, o cabelo fazia um “efeito estufa” e o
cheiro ficava ali guardado, era só mexer no cabelo na altura dos ombros e o
cheiro tomava conta de todo o ambiente num máximo de meio metro de distancia,
alcance do olfato da garota. O homem estava desconcertado. Desconcertado saiu e
nem foi percebido, Claire e a mulher nem perceberam e quando se deram conta
outros dois drinques tinham acabado de chegar à mesa. Quem o segurava era um
homem moreno quase negro, não muito forte, nem muito definido, mas bem vestido.
Os tons combinavam muito bem, o a camisa estava com o botão do pescoço aberto,
libertando uma visão translúcida do peitoral dele e um pouco da fragrância do
perfume. Tinha os cabelos cortado bem curto, e um olhar penetrante. Claire,
antes mesmo de ele pedir, já tinha dito com os olhos que ele poderia sentar. Ele
sentou, aquela figura enigmática disse que só queria observar, todas as outras
mesas estavam com casais ou então com pessoas sozinhas e ele não estava muito a
fim de conversa, só queria se sentar.
- É claro, mas, você não acha estranho sentar-se, nos trazer
bebidas e querer que acreditemos que tudo não passa de uma vontade de sentar? –
Claire pergunta meio maravilhada pela beleza do homem, meio chateada por ele
ter interrompido a cantada.
- Não que eu quisesse me intrometer, mas, esse é um bom modo
de chamar a atenção, principalmente quando a bebida não foi solicitada ao
garçom previamente, pois, se fosse vocês nem olhariam para quem colocava as
duas taças na mesa.
- Você está certo, mas, qual o seu interesse de observação? –
A mulher morena pergunta para ele.
- Às mulheres é claro! E mais evidente ainda, observando os
homens pisando na bola constantemente, são brutos, não conhecem nada de
sedução, nada sobre uma boa conversa, nada sobre nada. Mal, sabem olhar para as
mulheres, vivem impedindo elas de serem elas mesmas, sempre querendo chegar
logo lá, sempre falando das pernas dela, dos lábios, e elas entendendo que eles
só querem sexo. Elas também só querem isso, mas, não invadem os homens para
isso.
- Você, você já me ouviu falar da minha teoria? – Claire pergunta
meio desconcertada.
- Não, claro que não garota, nunca lhe conheci, quer dizer
venho lhe vendo desde que chegou, mas, nunca falei com você.
- Me observando? Como assim? Como não percebi? – Claire,
gagueja um pouco, ela sempre percebia quando olhavam para ela – Bem, isso não
importa agora, você precisa ouvir sobre a “De como olhar com os olhos”.
- Entendo perfeitamente – O homem estava entusiasmado,
Claire tinha organizado tudo o que ele pensava sobre a falta de preparo do
homem para a sedução, tudo. Ele não ouviu atentamente os detalhes, os exemplos,
tudo. Ouviu atentamente, ouviu e sentiu que aquela noite iria se prolongar,
pois, o olhar de Claire modificou-se, o foco estava nele e não na garota ao
lado dela.
- Veja só – Claire falou – você disse que me observou desde
quando cheguei, conte-me como não percebi isso?
- É simples Claire – falou a mulher morena – ele, antes
mesmo de você contar, já “olhava com os olhos”.
- Exatamente, Claire. Vi-lhe chegando com os cabelos presos
e um blazer, entrou no banheiro e saiu de lá sem o blazer e com os cabelos
soltos. Logo pensei que para fazer isso no banheiro você deve ter lavado o
rosto, retocado a maquiagem, e colocado perfume no pescoço, apenas duas
baforadas de puro perfume – o homem olhava atentamente no olhar de Claire,
atentamente, penetrava por entre a íris, uma porta para o convencimento.
- Fale mais, fale mais – Claire sentiu-se molhada, isso
nunca havia acontecido, era excitante.
- Ficou sentada, olhando as pessoas como eu. Percebeu a
mediocridade do gênero masculino e na incapacidade deles de seduzir, percebeu
que as mulheres desistiram de lutar contra isso e hoje se lançam sobre cantadas
bestas, e as usam como piadas entre as amigas. Percebeu o casal na mesa ao
lado, percebeu a inexperiência do homem que estava aqui anteriormente, decidiu
mostrar a ele como se faz e ofereceu um drinque, e desde então vem tentando
convencer essa linda mulher a ir para sua casa, apesar dela não ter percebido
que você já a desejou e fantasiou coisas.
- Como assim? Ela estava me seduzindo? Eu só pensei que
tinha arrumado uma companheira de bebidas, por hoje, ou talvez por algum tempo,
eu, eu, estou sem palavras – a mulher morena disse olhando para Claire, quase
não acreditando.
- É verdade – a voz de Claire já estava trêmula, mal
conseguia conter a excitação – sabe minha linda, percebi você e decidi
investir, você estava quase indo ao meu apartamento e lá o vinho se
encarregaria do resto, sempre é assim. Porém, esse lindo homem veio para
estragar tudo, pois, ele saque que eu gosto do que ele gosta.
- Sei sim, por isso, vim oferecer um vinho em minha casa,
sem compromisso. Só para terminar essa conversa em paz, com menos barulho, com
mais privacidade e de forma mais confortável. Prometo que não farei nada
demais, apenas pretendo conversar.
- Eu topo! – Claire não se continha, logo ficou em pé, pegou
a bolsa, ajeitou o vestido, e soltou o cabelo novamente, deixando escapar o
perfume.
- Eu ainda não estou entendendo tudo isso, mas, eu topo – a mulher
morena falou – vocês se quiserem fazer algo, façam entre si.
Ao chegar à
prometida casa, confortável e sensual prometida casa, Claire observou
lentamente. Viu um brinquedo de criança perto do sofá da sala foi esquecido ali
por alguém, ela foi pegou o brinquedo e mostrou para o homem, pediu uma
explicação, pois, era evidente que sua excitação não duraria mais um segundo se
em algum quarto estivesse dormindo uma criança de no máximo seis anos. Logo
ficou esclarecido que aquele belo homem já tinha sido casado, e a filha ficava
com ele alguns dias da semana, mas, naquela noite ela não estava. Abriram o
vinho, e Claire parecia mais excitada com aquele homem, que por cima parecia
ser um pai atencioso.
O vinho realmente
encarregou-se do trabalho, logo Claire e o homem convenceram a mulher morena de
irem os três para a cama. A cama horas parecia pequena para os três, hora parecia
enorme. As roupas se confundiam no chão e mãos se confundiam na pele. Tons
misturados, desejos misturados. Noite surpreendente, porém, não houve quem
acordasse pela madrugada e bebesse litros d’água e corresse para o carro. Eles
ficaram ali, a experiência foi saborosa demais para provarem apenas uma única
vez.
A madrugada
varou o dia, o dia varou as refeições, o apartamento estava com as cortinas
fechadas e assim elas continuaram. Três corpos nus andavam pela casa,
cozinhavam, brincavam, sorriam, assistiam filmes, jogavam-se na cama. Um fim de
semana diferente. Confortável.
Claire
lembrava-se perfeitamente daquele dia, foi um dia diferente. Foi o primeiro
homem que ela conheceu que sabia “olhar com os olhos”, o primeiro homem que
além de cor tinha sabor de café. Aquele sabor quente, suave e forte ao mesmo
tempo, sabor misturado com perfume. Ele sabia “olhar com os olhos”, ele era
diferente de outros homens, por isso a facilidade, não parecia estranho
deitar-se com ele. Claire lembrava-se das cenas, recusava lembrar os nomes. Ela
não sabia por que, mas, se recusava. Nem mesmo para Anna ela falou os nomes.
Anna. Anna foi
o motivo para tantas lembranças. Ela falou de sua teoria para Anna na noite
anterior. Na verdade elas conversaram sobre muitas coisas. Aquela havia sido
uma noite atípica, pois, estava acordada na cama de Anna, roupas espalhadas
pelo chão, mas, sua calcinha estava delicadamente debruçada sobre o rosto de
Anna. Claire olhava atentamente, com desconfiança de tudo. Olhou, Olhou, com os
olhos, olhou. Deitou, abraçou Anna e dormiu.
(Y. S. S.)