quinta-feira, 26 de julho de 2012

Lembranças de Violet


             Violet estudou todo o ensino médio para ser médica, advogada, engenheira, dentista, enfermeira, ou qualquer coisa que fosse “bem quisto pela sociedade”. No meio do caminho houve um desvio. A culpa foi do seu professor de sociologia. Ele tinha um olhar voltado para o horizonte, mas, uma percepção vibrante do cotidiano, falava das pessoas como se lesse suas mentes, ou tivesse tido um curso extensivo e intensivo sobre freudismo. Falava gesticulando bastante e quando não gostava de algo gritava, gritava como quem sentia dor pelas dores alheias, como quem chorasse lágrimas terceiras, como que morresse ao ver a morte alheia.
            Violet olhava aquele homem com um ar interessado, ar curioso e distante, distante por segurança, “quem é este homem?” ela se perguntava desde os quinze anos. Teve aulas de sociologia com ele até os dezoito. Três anos de loucura. Ouviu falar de culturas diversas. A Índia e a China estavam cada vez mais próximas, não se apreciam com um vulto distante de culturas estranhas e assustadoras. Tomar banho num rio cheio de mortos não era nojento, “é sim, mas, nojento de um jeito lindo, curioso, cultural”, ela pensava – obrigando-me a corrigir o texto.
            Pensou em viajar, mas, não tinha tanto dinheiro como imaginava. Tentou guardar, mas, mesmo trabalhando ganhava pouco. “Em nosso país o trabalho não é valorizado!” dizia seu professor de sociologia, e Violet lembrava cada palavra dele. Até um dia pensar que estava enlouquecendo, foi um fato curioso, pois, estava ela sentada com sua família na mesa de jantar e seu pai lia o jornal. Violet olhou para o lado, viu a mãe implorar a atenção do marido com os olhos, barulhos e perguntas: “Amor quer comer arroz? Quer comer feijão? Amor quer comer Purê? As comidas hoje estão especiais”, cada vez que ouvia um quer, Violet esperava, já com o rosto contraído, a mãe falar para seu pai: “Amor quer fazer o favor de me comer?”.
- Pai, sabe qual o problema da nossa família? – Violet com essa pergunta interrompeu o desespero de sua mãe e o barulho do seu pai mastigando e instaurou um silêncio sepulcral.
- Qual Violet? – seu pai procurou saber o que a filha tinha para falar, mas, com ar de quem não se importava (e não se importava mesmo).
- Todas as possibilidades de diálogo foram cortadas na maternidade. Quer dizer, antes da maternidade. Você não queria ser pai, se quisesse seria um bom pai. Você o seria se fosse pai de um menino, como eu nasci mulher você me rejeitou e, rejeitou junto à possibilidade de “fazer” mais meninas. Com o passar dos anos as coisas pioraram, meu corpo foi se desenvolvendo, fui criando interesse pelo sexo oposto, e o sexo oposto criando interesse em mim até que enfim nós criamos interesse pelo sexo mesmo. A rejeição virou nojo. Você acha que eu nunca o percebi ouvindo por detrás da porta? Você acha mesmo que eu faria algo “errado” em casa? Você acha que eu, como posso dizer para ser menos chocante, me “tocaria” no meu quarto, com vocês a passos de distancia? Nunca. Nossa família foi substituída por um organismo que sobrevive no cotidiano. Não um cotidiano comum, necessário a vida em sociedade, mas ao cotidiano ordinário, com isso quero dizer medíocre, pois, não uso a palavra ordinário com o significado de cotidiano, mas, de medíocre e extremamente tedioso. Acordamos, tomamos café juntos, vamos fazer nossas “obrigações sociais” depois voltamos para casa, jantamos juntos e nos lançamos em nossos mundinhos diários. Sem conversa, sem nada de diferente, apenas o ordinário, medíocre, tedioso e ordenador cotidiano. Sabe, não quero ser aquilo que vocês querem de mim. Nunca conversaram sobre isso, quero dizer conversar para dialogar, saber minha posição quanto a tais escolhas e não conversar para convencer. Normalmente vocês conversam para convencer, eu quero vencer sem ser coagida a isso. Quero estudar música, pintura, sociologia, aprender sobre os outros, aprender sobre o passado, sobre o universo, sobre como a Terra funciona, e sobre como nós deixamos de funcionar na Terra. Quero aprender sobre as relações entre as pessoas, sobre relacionamentos, sobre pessoas, sobre músculos – uso e desuso deles, aprender sobre a voz e como melhor utilizá-la, aprender o melhor modo de ajudar as pessoas, aprender sobre sexo, na prática! – Violet respirou profundamente enquanto observava as reações dos seus pais: jornal amassado, comida sobre a mesa, talheres ao chão, rostos “atabacados” e total descrença de que tudo aquilo havia saído da boca da sua “linda filhinha”.
            Após segundos ou minutos de total silêncio e troca de olhares, o pai de Violet sai da mesa lentamente com o rosto avermelhado. Sua mãe simplesmente ensaia verter uma única lágrima sobre o rosto. Violet se levanta e sai. Vai ao quarto, liga o computador, conversa com os amigos e conta as novidades daquela noite. Troca alguns recados salientes com meninos bonitos e gostosos e vai dormir.
            Violet lembrava-se desse fatídico evento como se tivesse acontecido ontem, mas, não foi. Hoje ela está com 25 anos e está bem mais velha. Ela não tinha aprendido sobre tudo o que queria, conseguiu terminar o curso de “Estudos Sociais” que englobava sociologia, antropologia, ciência política, educação e psicologia social. Depois foi estudar fotografia, sem explicações para isso. Violet sempre achou a fotografia interessante, deixar estático e ao mesmo tempo, contraditoriamente, dinâmico algo da vida humana. Tudo isso mediado pela memória, pela interpretação e pelo mercado. Ela não era uma exímia contestadora do capitalismo. Discordava com muitas coisas, que não cabe listar aqui, mas concordava com tantas outras. Uma das que concordava era a possibilidade de fazer da arte fotográfica algo lucrativo. Lucrava e ganhava o mundo. Pessoas do Japão poderiam conhecer sua arte, sem nem ao menos tê-la conhecido. Porém, ela estava no começo da carreira e queria aprender mais. Aprendeu, também, mais sobre música, músculos, voz, relações interpessoais, relacionamentos e tudo isso a ajudou a aprender sobre sexo.
            Violet aprendeu sobre sexo muito bem, não de forma pornográfica, medíocre, suja, e inescrupulosa. “Aprendi sobre o sexo fazendo-o, tendo experiências, testando. E isso não me deixa constrangida ou suja ou inescrupulosa e nem permite me chamarem de safada, ou fogosa. Sou apenas uma amante do sexo, e procuro sentir prazer e proporcionar prazer. Não me vendo para proporcionar prazer e nem para ter prazer. Não tenho nada contra isso, mas também não sou a favor. Amor o sexo, não a nada melhor do que sentir prazer. Sabe, jantar sabendo que depois o corpo irá queimar e derreter-se como brasa em neve é excitante. O olho no olho, a promessa de uma noite de gozo e suor é delirante. É como tomar uma taça de vinho sabendo que há uma adega esperando pelo momento de embriaguez. É esperar, esperar, esperar a ideia chegar, escrever uma poesia e depois recitá-la e no momento em que recita observa os olhares fascinados dos ouvintes. É como fazer uma boa comida, pensar nos temperos, pensar em como cada segundo que o alimento passa na boca a degustação passa informações diferentes ao cérebro, gera prazer. O prazer gustativo é um prazer que antecede ao sexo. Como uma pré preliminar. Repito, como tomar uma taça de vinho sabendo que há uma adega esperando pelo momento de embriaguez”. Da última vez que proferiu tais palavras roubou a admiração imediata e excitante do ouvinte, e ouviu que suas palavras já soavam como poesia, e nomeou-o como “sensação da taça de vinho”.
            Violet sabia que sua experiência sexual não a deixaria na mão, literalmente. Mas, lembrar tudo isso, fazer toda essa exegese era importante. Importante para lembrar-se dos seus sonhos, suas vontades, sua história de vida e como isso a havia levado até ali. E essa história também é interessante. Ali era a casa de um homem que ela havia conhecido na noite anterior.
            Violet estava com um novo vestido vermelho. Ela gostava da cor, não usaria nunca violeta, seria muito redundante. Ela não gostava de redundâncias. Era levemente decotado e facilitava na sensualidade. Seu corpo era lindo, magro e não muito volumoso, mas com curvas, com seios e um pouco de bunda, pouco. Seus lábios tinham um peculiar tom rosado. Tão peculiar e tão rosado que Violet normalmente não usava batons, preferia deixar sempre seus lábios umedecidos. Seu olho era verde claro, mas, ela sabia usar o olhar para realçar a cor. O verde era claro, mas invasivo, observador. Na noite anterior ela percebeu, logo ao entrar num pub, um homem sentado estrategicamente numa das pontas do estabelecimento. O observou por quase duas horas e após ter colhido informações suficientes e lembrado de informações suficientes foi até a mesa onde estava o fotógrafo reconhecido e puxou conversa.
            André mostrou-se desconsertado, mas soube desenrolar o momento. Beberam bastante, e Violet estava com a “sensação da taça de vinho” na mente enquanto olhava para André, esperou que ele falasse sobre o envolvimento com a modelo Anna em seu belo ensaio fotográfico, esperou ele falar sobre o café, algo que se encaixava perfeitamente com a “sensação da taça de vinho”. E ao fim da conversa, pediu “O que você acha de tomarmos um café? Talvez você faça um pra mim?”.
Violet viu os fatos acontecendo rapidamente, rememorando pensou: “Saíram do pub, foram em carros diferentes, mas chegaram ao mesmo lugar. A casa/estúdio de André tinha um cheiro impregnado de café, não saia, cheiro cremoso como o líquido e, quente, quente como o calor de dois corpos suados em atrito constante durante uma noite fria e incomum”.
O fator gustativo do café mostrou seu valor, não permitindo que nem Violet nem André terminassem a noite na mão. O frio da noite facilitou à aproximação afim de calor, calor humano. A embriaguez facilitou na decisão de André de tocar na cintura de Violet, um toque preciso, na parte mais sensível da cintura dela. Arrastou os dedos pelas costas, fazendo o caminho inverso da costura, chegando à alça, despiu-a. Parou ali, olhando os seios de Violet, lindos. Formato, volume, cor, sinais, tudo simetricamente preparado para excitar o paladar.
Violet viu a cena, levou seu seio desnudo aos lábios de André. O tempo mudou a rotação, o que era devagar virou rápido, extremamente rápido, insano e profundamente caótico. Logo a mesa não iria aguentar o peso e os movimentos bruscos, caíram no chão. Mudaram de posições, trocaram prazeres, faziam o que a embriaguez permitia. Sorte que a “dose” de café foi generosa, Violet quase não estava sobre efeito alcoólico, a adrenalina tomou conta do corpo, o prazer tomou conta do corpo. O suor respingava no chão, as mãos suadas não se sustentavam paradas e escorregavam frequentemente. Rapidamente estava na cama, rapidamente repetiam tudo, tudo. Durante a madrugada, ainda acordados conversavam, a partir da conversa testavam. Testavam-se, trocando experiências, prazeres, gostos, tons, fluidos e cheiro. O atrito descamava a microscópica crosta de tecido morto da pele de ambos, aonde se fixava o cheiro dos perfumes, logo o cheiro iria se impregnar na cama, assim como os fios de cabelos negros de Violet no travesseiro.
Violet havia acordado, antes de André. Vinte minutos suficientes para relembrar de tudo isso, o gosto de André estava em seu lábio. A sensação de prazer em sua mente. Seu corpo coberto pelo edredom conservava as memórias sensitivas, toques. Após lembrar-se da adolescência, pensou em como cresceu e aprendeu. Agora poderia aproveitar e aprender ainda mais, mas, agora com saberes para trocar. Mutuamente, poderia juntar fotografia e sexo.

(Y. S. S.)