sábado, 15 de setembro de 2012

Lembranças de Claire: "de como olhar com os olhos"


Claire nunca se satisfez em ir a um pub, pedir um chopp e sair de lá em poucas horas. Ela gostava de ver mulheres. Todas elas, das mais recatadas e patricinhas até as mais desengonçadas. Adorava aquelas saias floridas combinando com blusas básicas e pulso cheio de pulseiras e um brinco de pena apenas na orelha esquerda. Mas, também lambia os lábios quando adentrava o olhar num belo decote, esperando a beldade passar, olhava o formato da bunda que a calça jeans fazia, olhava atentamente na bolsa com cores extravagantes, mas, pouco reparava no homem ao lado que normalmente era um jovem bem sucedido ou um coroa enxuto metido a “boyzinho” e malhado. Eles nunca eram interessantes.
            Quer dizer, já foi um dia. Foi quando Claire estava bolando sua teoria, “de como olhar com os olhos”. Para ela os homens não sabiam olhar uma mulher, eles nunca conseguiam absorver a totalidade da sensualidade feminina porque a castravam antes mesmo de ser liberada. Castravam pelo processo “sujo” de olhar invadindo aquele ser majestoso. É simples, o homem não olha com os olhos, olha com a cabeça inteira. Toda mulher que passa por um homem o faz quase quebrar a cabeça, pois, este “bendito” gira a cabeça quase 180 graus para ter “a melhor vista” da traseira da garota. Isso já é invasivo, já é atordoante, já se torna inconveniente o suficiente para a linda mulher parar de andar com leveza e agir com mais pressa, parar de jogar o cabelo e se preocupar em prendê-lo e despistar a atenção para algo na bolsa.
            Havia também o retardo no olhar. O homem só olhava para o que queria olhar da mulher enquanto falava com ela, era difícil conversar com um homem e perceber que ele estava prestando atenção mesmo era nos seios, no decote, nos lábios. Tudo bem que às vezes a vontade de beijar lábios carnudos é incontrolável, mas, para Claire um homem nunca chegaria ao beijo agindo daquela maneira. As mulheres não tinham retardo algum, elas olhavam, dissecava o homem completamente, e quando iam falar com eles já conhecia aquele corpo de olhos vendados, era só aproveitar a conversa preliminar de uma noite fogosa.
            As mulheres usam suas amigas para averiguar como o homem que está atrás dela – que por sinal está de frente para a amiga – sem precisar demonstrar que se interessou nele. Os homens, infelizmente, só sabiam pedir a opinião do amigo para saber se determinada mulher era “gostosa” ou não. Para Claire isso era uma falácia, pois, como saber se algo é gostoso sem ter provado? É como olhar para um bolo de chocolate, extremamente confeitado com muito recheio e na hora de levar o garfo à boca descobrir que de tão doce o bolo é intragável!
            O homem se aprendesse a usar os olhos com eficácia poderia mostrar o interesse sem ser invasivo ou poderia apenas tarar sem constranger e castrar a sensualidade da mulher observada. Ficaria mais expert ainda se usasse a visão lateral, é uma ótima forma de evitar girar a cabeça à 90 graus, e se soubesse usar uma superfície refletora, seja ela qual for – espelho, retrovisor, vidro – poderia olhar com o mesmo efeito de estar virando a cabeça à 180 graus.
            Claire sofreu e ainda sofre com esses “olhares de cabeça”, ela se impressiona como outras mulheres ainda se deixam levar por esse tipo de olhar. Quase nenhum homem “descobriu” ou “aprimorou-se” nessa forma feminina de olhar com os olhos. Nunca foram mulheres, muitos e muitas dirão, porém, todas aprovam o tipo de olhar. “Não é todo o dia que eu quero me ver despida pelo olhar de um homem que não soube ‘disfarçar’ a virada da cabeça”, “Isso é totalmente deselegante”. Era como Claire pensava, era como muitas mulheres pensavam, pois, “Apesar de gostar de me sentir desejada, tenho medo, o olhar parece não se conter, parece me estuprar”. É castrador, viola, é constrangedor, é horrível.
            As mulheres poderiam ensinar aos homens, é claro! Mas não daria certo. Eles aprenderiam demais sobre as mulheres, deixem as mulheres como estão, com a sensualidade, com a sexualidade delas, intactas, sendo castradas em breves milésimos de segundos. Pois, depois de castradas, a sensualidade volta, e volta tão perfeita que consegue fixar o olhar de Claire, é difícil desgrudar, é difícil deixar passar.
Ao som de alguma música instrumental o pub ia lotando, lotando. Pessoas iam à caça, pessoas iam afogar mágoas, pessoas iam relaxar após o dia puxado de trabalho, pessoas iam se encontrar e conversar, pessoas iam achar um par para passar a madrugada transando, relaxando, bebendo ou fumando, bebendo e fumando, bebendo e fumando e transando. Era assim que Claire as via, com passos pré-programados, ínfimos passos pré-programados. Claire gostava de misturar, modificar as coisas, abrilhantar a noite, tudo com requinte, com um jeito especial. Todas as noites eram especiais, principalmente na véspera de um final de semana.
            Na mesa ao lado estava um casal, um homem de barbas à fazer, com cabelos castanhos bem penteados e bem cortados, lisos e freneticamente ajeitados. Roupa casual, com tons desinteressantes, mas devia ter um “papo” interessante. Era fácil prever, ele iria jogar toda a conversa na mulher que o acompanhava, iria prometer algumas safadezas para aquela noite, dizia que tem carro – o que garante o conforto do transporte – mas, não evitaria beber alguns drinques, pois, era exatamente a leveza do álcool que o fazia dirigir com mais ânimo. Ela concordaria em deleitarem-se na aventura, os dois iriam para a casa dele – convenientemente um solteiro que já mora sozinho apesar da pouca idade – continuariam bebendo algo, ele iria fazer uma “comidinha” – a de sempre é claro, pois, ele só aprendeu uma coisa para fazer – ela iria achar ele um ótimo cozinheiro. Ele, enquanto abria a garrafa de vinho, iria falar dos ingredientes sofisticados que usava nas comidas, mal sabendo ele que de sofisticado a pimenta indiana não tem nada, mera invenção da história, por fim ele colocaria a mesa. O vinho se encarregaria sozinho de fluir a cena. Era do vinho o aroma delirante, era do vinho o sabor da volúpia do momento, do apetite insaciável do lábio alheio. O tom deixado nos lábios exigia saliva, a saliva incitava o beijo. Era do vinho a embriaguez responsável por levar os dois corpos à cama, espalhar roupas pelo chão, suar intensamente, suar intensamente, suar intensamente, suar intensamente, cansar intensamente e dormir. Acordar ainda na madrugada, beber litros d’água e correr para o carro ainda sem calçar o salto alto, voltar para casa no escuro ainda sentindo o órgão rígido alheio.
            Era fácil de prever, Claire gostava de fazer o imprevisível, gostava de modificar a ordem das coisas. Então pediu para o garçom mais duas doses do que o casal estava bebendo, moveu-se levemente para a mesa, ofereceu as bebidas e sentou-se com eles. Depois de algumas horas o homem já estava desconcertado. Ele imaginava que havia ganhado na loteria e iria pela primeira vez dormir com duas mulheres, o sonho de toda a virilidade masculina. De toda a virilidade tola, pois, o normal era o homem não conseguir dá conta das mulheres e elas acabarem cansando dele, e depois dele dormir elas faziam a festa. Claire sabia, a festa dessa noite era dela e daquela linda mulher.
            A conversa fluía fácil, Claire sabia mexer no cabelo apenas nas horas indispensáveis, pois, era no pescoço a concentração de perfume, o cabelo fazia um “efeito estufa” e o cheiro ficava ali guardado, era só mexer no cabelo na altura dos ombros e o cheiro tomava conta de todo o ambiente num máximo de meio metro de distancia, alcance do olfato da garota. O homem estava desconcertado. Desconcertado saiu e nem foi percebido, Claire e a mulher nem perceberam e quando se deram conta outros dois drinques tinham acabado de chegar à mesa. Quem o segurava era um homem moreno quase negro, não muito forte, nem muito definido, mas bem vestido. Os tons combinavam muito bem, o a camisa estava com o botão do pescoço aberto, libertando uma visão translúcida do peitoral dele e um pouco da fragrância do perfume. Tinha os cabelos cortado bem curto, e um olhar penetrante. Claire, antes mesmo de ele pedir, já tinha dito com os olhos que ele poderia sentar. Ele sentou, aquela figura enigmática disse que só queria observar, todas as outras mesas estavam com casais ou então com pessoas sozinhas e ele não estava muito a fim de conversa, só queria se sentar.
- É claro, mas, você não acha estranho sentar-se, nos trazer bebidas e querer que acreditemos que tudo não passa de uma vontade de sentar? – Claire pergunta meio maravilhada pela beleza do homem, meio chateada por ele ter interrompido a cantada.
- Não que eu quisesse me intrometer, mas, esse é um bom modo de chamar a atenção, principalmente quando a bebida não foi solicitada ao garçom previamente, pois, se fosse vocês nem olhariam para quem colocava as duas taças na mesa.
- Você está certo, mas, qual o seu interesse de observação? – A mulher morena pergunta para ele.
- Às mulheres é claro! E mais evidente ainda, observando os homens pisando na bola constantemente, são brutos, não conhecem nada de sedução, nada sobre uma boa conversa, nada sobre nada. Mal, sabem olhar para as mulheres, vivem impedindo elas de serem elas mesmas, sempre querendo chegar logo lá, sempre falando das pernas dela, dos lábios, e elas entendendo que eles só querem sexo. Elas também só querem isso, mas, não invadem os homens para isso.
- Você, você já me ouviu falar da minha teoria? – Claire pergunta meio desconcertada.
- Não, claro que não garota, nunca lhe conheci, quer dizer venho lhe vendo desde que chegou, mas, nunca falei com você.
- Me observando? Como assim? Como não percebi? – Claire, gagueja um pouco, ela sempre percebia quando olhavam para ela – Bem, isso não importa agora, você precisa ouvir sobre a “De como olhar com os olhos”.
- Entendo perfeitamente – O homem estava entusiasmado, Claire tinha organizado tudo o que ele pensava sobre a falta de preparo do homem para a sedução, tudo. Ele não ouviu atentamente os detalhes, os exemplos, tudo. Ouviu atentamente, ouviu e sentiu que aquela noite iria se prolongar, pois, o olhar de Claire modificou-se, o foco estava nele e não na garota ao lado dela.
- Veja só – Claire falou – você disse que me observou desde quando cheguei, conte-me como não percebi isso?
- É simples Claire – falou a mulher morena – ele, antes mesmo de você contar, já “olhava com os olhos”.
- Exatamente, Claire. Vi-lhe chegando com os cabelos presos e um blazer, entrou no banheiro e saiu de lá sem o blazer e com os cabelos soltos. Logo pensei que para fazer isso no banheiro você deve ter lavado o rosto, retocado a maquiagem, e colocado perfume no pescoço, apenas duas baforadas de puro perfume – o homem olhava atentamente no olhar de Claire, atentamente, penetrava por entre a íris, uma porta para o convencimento.
- Fale mais, fale mais – Claire sentiu-se molhada, isso nunca havia acontecido, era excitante.
- Ficou sentada, olhando as pessoas como eu. Percebeu a mediocridade do gênero masculino e na incapacidade deles de seduzir, percebeu que as mulheres desistiram de lutar contra isso e hoje se lançam sobre cantadas bestas, e as usam como piadas entre as amigas. Percebeu o casal na mesa ao lado, percebeu a inexperiência do homem que estava aqui anteriormente, decidiu mostrar a ele como se faz e ofereceu um drinque, e desde então vem tentando convencer essa linda mulher a ir para sua casa, apesar dela não ter percebido que você já a desejou e fantasiou coisas.
- Como assim? Ela estava me seduzindo? Eu só pensei que tinha arrumado uma companheira de bebidas, por hoje, ou talvez por algum tempo, eu, eu, estou sem palavras – a mulher morena disse olhando para Claire, quase não acreditando.
- É verdade – a voz de Claire já estava trêmula, mal conseguia conter a excitação – sabe minha linda, percebi você e decidi investir, você estava quase indo ao meu apartamento e lá o vinho se encarregaria do resto, sempre é assim. Porém, esse lindo homem veio para estragar tudo, pois, ele saque que eu gosto do que ele gosta.
- Sei sim, por isso, vim oferecer um vinho em minha casa, sem compromisso. Só para terminar essa conversa em paz, com menos barulho, com mais privacidade e de forma mais confortável. Prometo que não farei nada demais, apenas pretendo conversar.
- Eu topo! – Claire não se continha, logo ficou em pé, pegou a bolsa, ajeitou o vestido, e soltou o cabelo novamente, deixando escapar o perfume.
- Eu ainda não estou entendendo tudo isso, mas, eu topo – a mulher morena falou – vocês se quiserem fazer algo, façam entre si.

            Ao chegar à prometida casa, confortável e sensual prometida casa, Claire observou lentamente. Viu um brinquedo de criança perto do sofá da sala foi esquecido ali por alguém, ela foi pegou o brinquedo e mostrou para o homem, pediu uma explicação, pois, era evidente que sua excitação não duraria mais um segundo se em algum quarto estivesse dormindo uma criança de no máximo seis anos. Logo ficou esclarecido que aquele belo homem já tinha sido casado, e a filha ficava com ele alguns dias da semana, mas, naquela noite ela não estava. Abriram o vinho, e Claire parecia mais excitada com aquele homem, que por cima parecia ser um pai atencioso.
            O vinho realmente encarregou-se do trabalho, logo Claire e o homem convenceram a mulher morena de irem os três para a cama. A cama horas parecia pequena para os três, hora parecia enorme. As roupas se confundiam no chão e mãos se confundiam na pele. Tons misturados, desejos misturados. Noite surpreendente, porém, não houve quem acordasse pela madrugada e bebesse litros d’água e corresse para o carro. Eles ficaram ali, a experiência foi saborosa demais para provarem apenas uma única vez.
            A madrugada varou o dia, o dia varou as refeições, o apartamento estava com as cortinas fechadas e assim elas continuaram. Três corpos nus andavam pela casa, cozinhavam, brincavam, sorriam, assistiam filmes, jogavam-se na cama. Um fim de semana diferente. Confortável.
            Claire lembrava-se perfeitamente daquele dia, foi um dia diferente. Foi o primeiro homem que ela conheceu que sabia “olhar com os olhos”, o primeiro homem que além de cor tinha sabor de café. Aquele sabor quente, suave e forte ao mesmo tempo, sabor misturado com perfume. Ele sabia “olhar com os olhos”, ele era diferente de outros homens, por isso a facilidade, não parecia estranho deitar-se com ele. Claire lembrava-se das cenas, recusava lembrar os nomes. Ela não sabia por que, mas, se recusava. Nem mesmo para Anna ela falou os nomes.
            Anna. Anna foi o motivo para tantas lembranças. Ela falou de sua teoria para Anna na noite anterior. Na verdade elas conversaram sobre muitas coisas. Aquela havia sido uma noite atípica, pois, estava acordada na cama de Anna, roupas espalhadas pelo chão, mas, sua calcinha estava delicadamente debruçada sobre o rosto de Anna. Claire olhava atentamente, com desconfiança de tudo. Olhou, Olhou, com os olhos, olhou. Deitou, abraçou Anna e dormiu.  

(Y. S. S.)

4 comentários:

  1. Ótimo texto. Sem muitas surpresas, pois, até então, já conversamos sobre esta teoria de "olhar com os olhos". Porém, muito bem construído.
    Beijos

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  2. Foi uma forma de passar a "teoria" de forma mais simples que no texto anterior, e é claro prender a personagem dentro de sua própria teoria, fazer a teoria tomar forma e significado. Claire ainda passará por alguns contratempos e a tal "teoria" ficará como um sombra. Thank's pelo comente preta!

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  3. Os dois adeptos da teoria de "olhar com os olhos". Casais inteligentes que se entendem por meio dessa comunicação não verbal. Acho incrível.

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